quarta-feira, outubro 03, 2007

Bienal do Samba

I Bienal do Samba - TV Record (maio, 1968):

1º - Lapinha, de Baden Powell e Vinícius de Moraes, com Elis Regina; 2º - Bom tempo, de Chico Buarque, com Chico Buarque e MPB-4; 3º - Pressentimento, de Elton Medeiros e Hermínio Bello de Carvalho, com Elza Soares.

“O protesto dos sambistas, endossado pelos jornalistas, críticos de música, principalmente os do Rio de Janeiro, reclamando que o samba não tinha tido uma presença marcante no festival, fez com que criássemos a Bienal do Samba.

O sucesso do programa “Bossaudade”, apresentado por Ciro Monteiro e Elizete Cardoso, com um elenco basicamente “velha guarda”, justificava mais esta experiência. Um evento competitivo, cujos participantes foram escolhidos por uma comissão especial. Cada compositor indicado inscrevia a música que quisesse, sem julgamento prévio, desde que foss inédita, cláusula do regulamento que, para meu desespero, causou a desclassificação da belíssima Wave de Tom Jobim, porque já tinha sido gravada nos Estados Unidos por Sérgio Mendes.

Chico Buarque inscreveu um maxixe, Bom Tempo; Ataulfo Alves veio com Laranja Madura; Paulinho da Viola trouxe Coisas do Mundo, minha Nega; Baden Powell inscreveu Lapinha, em parceria com Vinícius de Moraes, que seria cantada por Elis Regina.

Enquanto eram concluídos os preparativos para a Bienal, em uma tarde de ensaios, pelos corredores do Teatro Record, ouvia-se o eco de uma batucada irresistível. Um bando de sambistas irradiando uma alegria contagiante ensaiava um número no qual faziam a base rítmica para algum samba a ser apresentado no “Bossaudade”. Eram Os Originais do Samba.

Imediatamente os convoquei para participarem da Bienal, e qual não foi a minha surpresa quando a maioria dos compositores inscritos, à medida que iam ouvindo o grupo, fazia questão de tê-los participando de seus números. Foi difícil deixar de atender. O resultado final foi de uma lógica cristalina: Lapinha, de Baden Powell e Vinícius de Moraes, cantada pela Elis e com o apoio dos Originais do Samba, dominou a Bienal desde a sua primeira apresentação e se tornou um número imbatível. Além de levar Lapinha ao primeiro lugar, Elis foi a melhor intérprete.

Em segundo lugar ficou Bom Tempo, de Chico Buarque, em terceiro Pressentimento, de Élton Medeiros e Hermínio Belo de Carvalho, em quarto Canto Chorado, de Billy Blanco, em quinto Tive Sim, do Cartola, em sexto Coisas do Mundo, minha Nega, de Paulinho da Viola, e em sétimo Marina, de Sinval Silva.

Na preparação da Bienal do Samba a necessária convivência com o elenco do programa “Bossaudade”, além de uma experiência humana maravilhosa, às vezes nos levava a momentos engraçados. Era comum a turma liderada pelo Ciro Monteiro, e sempre na companhia de Araci de Almeida, sair para jantar depois do programa. Antes e durante a gravação era regra que ninguém bebesse, mas depois...

Após um ruidoso jantar, aquele grupo alegre e descontraído de sambistas perdidos na noite da paulicéia desvairada saía a pé pelas ruas do centro, caminhando e sambando, em uma verdadeira crucis pelos bares onde ainda existia música ao vivo rolando. De canja em canja, e de gole em gole, a noite ia passando e o time aumentando. Era comum aquele bando acabar no café da manhã do Hotel Normandie, na avenida Ipiranga, onde a Record tinha permuta para hospedar seus artistas.

Certa madrugada, com os primeiros lampejos do dia nos ameaçando, ao passarmos pela esquina da avenida Ipiranga com a São João, Araci de Almeida, com seu jeito autoritário, disparou com solenidade: “Agora, em homenagem ao Paulinho Vanzolini, que fez a fama desta avenida, eu convido todo mundo para uma última rodada”. Assumiu então a frente do grupo, que, obediente, não . tinha outra alternativa senão segui-la. Uma dose a mais ou a menos já não faria muita diferença. Para surpresa geral, a Araca levou a turma para uma farmácia e foi logo ordenando a um espantado atendente: “Manda uma vitamina B12 na veia dessa moçada, senão ninguém vai chegar em casa com o figado inteiro”, e acrescentou: “Essa quem paga sou eu!”.

Na verdade, tanto nos festivais da Excelsior como no da Record, o samba mostrou que não tinha como competir, pelo menos naquele momento, com os novos ritmos que dominavam a música popular brasileira, principalmente com as novas formas dinâmicas dos arranjos feitos especialmente para obter reações emocionais das platéias, já condicionadas a eleger sua favorita e torcer por ela.

A competição trouxe muitas deformações, mas era o que atraía a atenção para o espetáculo do festival, sempre construído de forma a ser, desde as eliminatórias, um simples mas atraente programa musical de televisão. Minha intenção sempre foi utilizar o festival como um painel do que estava sendo feito na música popular em todo o país. Isso resultou em uma diversidade muito grande de ritmos e estilos, do regional ao experimental, que eu fazia questão de manter sempre presente.

A possibilidade de apresentar um novato ao lado de um nome consagrado em igualdade de condições fazia do festival a única porta de entrada para um novo compositor e também para o lançamento de novos cantores e grupos, pois o seu extraordinário sucesso atraía todas as atenções, não só do público, dos críticos e da imprensa em geral, mas também dos responsáveis pelo mercado do disco, em geral incompetentes para lançar qualquer coisa que não preencha as expectativas do que costumam rotular de comercial ou, como se usa hoje, de mercado.

Confundem popular com vulgar e esquecem que a platéia brasileira responde de imediato e com entusiasmo toda vez que é colocada diante de uma música de boa qualidade. Hoje o peso da televisão é muito grande, mas infelizmente a maioria dos seus dirigentes está mais preocupada com os índices de audiência e não com qualquer compromisso coerente com a cultura do país, considerando a música brasileira mero subproduto.

Raras foram as vezes em que a MPB foi utilizada como um trabalho especialmente composto para o seu principal instrumento de faturamento que são as novelas. É impressionante constatar que o veículo que poderia ser importantíssimo para a divulgação do trabalho de compositores brasileiros e da nossa música em geral, popular ou erudita, é utilizado para o lançamento de coletâneas desconexas, aproveitando ou até fazendo o sucesso do que já foi testado como comercial.

A tal trilha internacional então é aberração definitiva. Assistimos, em um contexto brasileiro, a um personagem brasileiro ser brindado com um tema completamente dissociado de seu caráter, a serviço do lançamento de algum novo fonograma que tenha aparecido com algum destaque na parada de sucesso internacional.

A esperança é que a TV a cabo consiga valorizar a segmentação e que a força do mercado convença as Emitivis a aumentar ainda mais a participação da música brasileira nas suas programações e não tenhamos mais de assistir aos DJs falando nomes absolutamente desconhecidos do nosso público, com tal naturalidade e intimidade, como se tivessem acabado de encontrá-los na esquina. Quem sabe ainda teremos alguma EmePeBeTV. E não pensem que eu não gosto da música americana. Mas isso fica para depois.”

Fonte: Prepare seu Coração - A História dos Grandes Festivais - Solano Ribeiro - Geração Editorial.

A derrocada dos Festivais

Aquele Abraço - Campanha publicitária da Petrobrás em 1969Com a imposição do Ato Institucional n° 5, seus efeitos fizeram-se sentir na sociedade como um todo. As expressões culturais em geral, e a música em particular, já eram vistas como espaços possíveis de resistência e subversão. 

O IV Festival de MPB da TV Record mal havia terminado, quase coincidindo com a edição do AI5 e, a 27 de dezembro de 1968, Gilberto Gil e Caetano Veloso foram detidos em São Paulo, em princípio para prestar depoimentos. Numa perua Veraneio, veículo de transporte da polícia, os dois compositores terminaram no Rio de Janeiro no Regimento de Pára-quedistas, de onde só cinco meses depois seriam soltos para, a “conselho” das autoridades, deixarem o país. Do exílio, em Londres, só voltariam quase três anos depois. Para justificar a prisão desses artistas, o DOPS buscou outros indícios para reforçar a medida:

Declarações datadas de 27.11.1969 de Antonio Carlos Martins, argentino, traficante de tóxicos — cocaína. Com referência a Caetano Veloso, consta que é ‘seu cliente’ (Documento 50-Z-9-1 1915. Arquivo do DOPS. Arquivo Público do Estado de São Paulo).

Para além da acusação de subversão, somava-se um depoimento talvez forjado — que permitia enquadrar Caetano Veloso corno um drogado. No arquivo do DOPS, Caetano Veloso freqüentemente é citado como “marginado” (sic), “sem qualificação” e, agora, como viciado em drogas. Se olhássemos friamente essas fichas, sem o conhecimento da obra de Caetano, imaginaríamos outra pessoa, incapaz de criar versos que até hoje, há 30 anos, nos vêm facilmente à memória e remetem ao entendimento de uma época. Mesmo presos, Gil e Caetano tinham livre sua obra, que mesmo em outras vozes ousavam desafiar:

Informe n. 42 datado de 17.2.1969 da 4a. Zona Aérea, constando que no programa de televisão “Vida Paixão e Banana do Tropicalismo”, havia alguns pontos discutidos e recusados pelos patrocinadores pelo seu conteúdo agressivo, fora de lugar, num programa que deveria ter sido um musical. Entre os tópicos cortados, consta a parte musical de números como “Tropicália’, de Caetano Veloso, onde inclusive constam no arranjo, algumas notas do hino internacional comunista etc. (Documento 50-D-26-787. Arquivo do DOPS. Arquivo Público do Estado de São Paulo).

A música Sabiá, referia-se ao exílio de intelectuais e políticos de oposição e que logo atingiria os compositores da MPB. Geraldo Vandré, que fora para o Chile, Chico Buarque, para a Itália e Edu Lobo para os EUA, comporiam o time de artistas “convidados” ao retiro. Ainda que o exílio significasse, para quem o impôs, urna forma de afastar alguma voz incômoda, a ausência desses compositores era lamentada por parte do público, como na carta de uma leitora do semanário Pasquim:

Tendo acabado de ler o número 12 desse precioso informativo, tomo da máquina de escrever para rogar-lhes responder-me, com urgência urgentíssima, uma questão de suma e vital importância: Cadê o Chico Buarque? Sem ele, o PASQUIM não é PASQUIM, e sim pasquim. Assim como, sem ele, onde está a música? Só tem dado música por aí. Talvez possam os senhores (podem acrescentar um ‘digno’ antes dos senhores, não vou cobrar) também informar se e quando Chico está por estas bandas (juro que não foi intencional) ou, pelo menos, quando é que vou ficar de novo grudada na vitrola, sentindo todas as poesias que ele se dá ao luxo de musicar. Quando é que vamos ter mais Chico? Chico é poesia e sem poesia a vida é muito chata (Carta enviada pela leitora Adélia Cruz, de São Paulo, capital, para o Pasquim, n. 13, setembro de 1969, p. 16).

Se a presença desses autores incomodava pelo movimento de reflexão que proporcionavam, a ausência deles não cessava esse movimento. Os compositores e intérpretes que aqui ficaram não gozaram de melhor sorte, pois o cerco da censura sobre suas composições crescia e era quase impossível o trabalho autônomo, sem a interferência da censura. Os festivais organizados a partir de 1969, sem a presença daqueles compositores consagrados, sentiram os efeitos daquela “diáspora” e da repressão. A ausência daqueles abre espaço para novos compositores, mas o contexto político-ideológico contribuiu para o aparecimento de canções que destoavam das que, até então, marcaram indelevelmente os festivais. A exceção, talvez um último suspiro da MPB nos festivais, tenha sido a música Sinal Fechado, de Paulinho da Viola, vencedora do V Festival de MPB da Record:

Olá, como vai / Eu vou indo e você tudo bem / Tudo bem eu vou indo / Correndo pegar meu lugar / No futuro e você / Tudo bem eu vou indo / Em busca de um sono tranqüilo / Quem sabe / Quanto tempo, pois é quanto tempo / Me perdoe a pressa / E a alma dos nossos negócios / Pois não tem de que / Eu também só ando a cem / Quando é que você telefona / Precisamos nos ver por aí / Pra semana prometo talvez nos vejamos / Quem sabe / Quanto tempo, pois é quanto tempo / Tanta coisa que eu tinha a dizer / Mas eu sumi na poeira das ruas / Eu também tenho algo a dizer / Mas me foge à lembrança / Por favor telefone eu preciso saber / Alguma coisa rapidamente / Pra semana — o sinal / Eu procuro você — vai abrir / Prometo não esqueço / Por favor não esqueça / Não esqueça Adeus — adeus

VIOLA, P. da. Sinal Fechado (LP). Paulinho da Viola. São Paulo: EMI-Odeon (31C 052422023), s/d.

As outras músicas classificadas no mesmo festival já não traziam qualquer denúncia mais explícita sobre a realidade da época. Vejamos a letra de outra vencedora, Cantiga por Luciana, de Edmundo Souto e Paulinho Tapajós, interpretada pela estreante Evinha, que venceu o IV Festival Internacional da Canção, da TV Globo, em 1969:

Manhã / No peito de um cantor / Cansado de esperar só / Foi tanto tempo que nem sei / Das tardes tão vazias / Onde andei / Luciana, Luciana / Sorriso de menina / Dos olhos de mar / Luciana, Luciana / Abrace essa cantiga / Por onde passar / Nasceu / Na paz de um beija-flor / Um verso em voz de amor / Já desponta os olhos da manhã / Pedaços de uma vida / Que abriu-se em flor / Luciana, Luciana (...)
(*) SOUTO, E. e TAPAJÓS, P. As canções que lembram você (LP). Evinha. São Paulo: EMI-Odeon (60560088), s/d.

Músicas como esta, certamente não se destacariam naquele ano se não fosse o cerco imposto à MPB. Havia música popular brasileira, mas a MPB, sigla que designava uma música propiciadora de reflexão e portadora de uma postura crítica, migraria para espaços menos privilegiados, nos interstícios do sistema, naquilo que Gilberto Vasconcelos designou de “frestas”.

Em Sinal Fechado, o autor já colocava em dúvida o possível reencontro com os compositores que se foram: “Quando é que você telefona / Precisamos nos ver por aí / Pra semana prometo talvez nos vejamos / Quem sabe ...“. O futuro era incerto e, por enquanto, havia obstáculos para se dizer, a afasia imperava na música: “Tanta coisa que eu tinha a dizer (...)“.

Enquanto a MPB se mantinha na intenção, esse espaço outrora repleto de protestos e denúncias, alguns mais explícitos, ou mesmo poéticos, era preenchido por canções afásicas, destituídas da incipiente tradição constituída nos festivais. Uma tradição que fora construída nas composições, em versos bem trabalhados, no palco, onde a disputa se dava a partir da mensagem crítica e, para além de tudo isso, no público, que se posicionava aplaudindo, vaiando e utilizando o espaço dos festivais para interferir na realidade.

Levamos ao conhecimento dessa Chefia que segundo comentário no meio estudantil de São Paulo, Chico Buarque de Holanda, Wilson Simonal e outros artistas vinculados ao setor radiofônico estariam articulando a realização de uma passeata, que aparentemente se relacionaria com o ‘Festival da Música Popular Brasileira’. Essa passeata, no entanto, propiciaria a infiltração de universitários que, ao seu final, apresentariam faixas e cartazes anunciando o encerramento do XXIX Congresso da UNE, burlando, dessa forma, a repressão policial. Segundo consta, ainda, o único que por enquanto manifestou-se contrário à idéia, foi o cantor Roberto Carlos, que colocou-se à margem dos entendimentos que nesse sentido estariam entabulados.

Nota: É de se notar que o referido festival foi inaugurado, há cerca de quinze dias, com uma concentração e posterior passeata, que se iniciou no Largo São Francisco com destino ao Teatro Record-Centro (Teatro Paramount). ‘SEP’, em 7-Ago-1967.( Documento 50-C-22-1647. Arquivo do DOPS. Arquivo Público do Estado de São Paulo).

O festival mencionado foi o III Festival de MPB da TV Record que, além de Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Sérgio Ricardo, Geraldo Vandré, contou com a presença de Roberto Carlos. Com o endurecimento do regime político e o A.I.5, os festivais foram sendo conquistados, pois, se a cultura é um campo de lutas, os festivais, em todos os seus espaços de atuação, também o eram.

Em 1970, Caetano e Gil ainda em Londres, Chico Buarque retorna ao Brasil, e o compacto com a música Apesar de Você é vetado pela censura. (Enquanto isso, o hino Pra Frente Brasil, de Miguel Gustavo, feito para a seleção brasileira de futebol que buscava a conquista do tri-campeonato mundial no México, alcançava enorme êxito popular).

Amanhã vai ser outro dia / Hoje você é quem manda / Falou, tá falado, não tem discussão, / A minha gente hoje anda falando de lado / E olhando pro chão, viu / Você que inventou esse estado / E inventou de inventar toda a escuridão / Você que inventou o pecado / Esqueceu-se de inventar o perdão / Apesar de você, amanhã há de ser outro dia / E eu pergunto a você onde vai se esconder / Da enorme euforia / Como vai proibir / Quando o galo insistir em cantar / Água nova brotando, e a gente se amando sem parar / Quando chegar o momento / Esse meu sofrimento vou cobrar com juros, juro! / Todo esse amor reprimido, esse grito contido / Esse samba no escuro / Você que inventou a tristeza / Ora, tenha a fineza de desinventar / Você vai pagar e é dobrado / Cada lágrima rolada nesse meu penar / Apesar de você, amanhã há de ser outro dia / Ainda pago pra ver o jardim florescer / Qual você não queria / Você vai se amargar / Vendo o dia raiar / Sem lhe pedir licença / E eu vou morrer de ‘rir / E esse dia há de vir / Antes do que você pensa / Apesar de você, amanhã há de ser outro dia / Você vai ter que ver / A manhã renascer e esbanjar poesia / Como vai explicar / Vendo o céu clarear de repente, impunemente / Como vai abafar / Nosso povo a cantar na sua frente / Apesar de você, amanhã há de ser outro dia /
Você vai se dar mal, etc e tal ... (Apesar de Você)
(HOLANDA, C. B. de. Chico Buarque (LP). Chico Buarque. Rio de Janeiro: Philips (6349398), 1978).

A gravação dessa música seria permitida somente em 1978, momento em que é revogado o A.I.5 e tem andamento o processo de anistia, permitindo o retorno de exilados. Nessa composição, Chico Buarque lança mão outra vez da metáfora do dia que virá. O autor começa com o diagnóstico sobre como é o dia de hoje. O sujeito da letra é indeterminado, mas tem endereço certo: “Hoje você é quem manda / Falou, tá falado, não tem discussão, não (...)“. Enquanto Apesar de Você era proibida, o V Festival Internacional da Canção da TV Globo premiava em primeiro lugar BR-3, de Antonio Adolfo e Tibério Gaspar, na interpretação de Tony Tornado.

A gente corre / E a gente corre na BR-3 / E a gente morre / E a gente morre na BR-3 / Há um foguete / Rasgando o céu, cruzando o espaço / E um Jesus Cristo feito em aço / Crucificado outra vez / Há um sonho / Viagem multicolorida / Às vezes ponto de partida / As vezes ponto de um talvez / Há um crime no longo asfalto dessa estrada / E uma notícia fabricada / Pro novo herói de cada mês / Na BR-3 Por isso eu morro na BR-3 / Por isso eu corro, corro / E tiro do vento na BR-3 / E novo vento na BR-3 / E o mundo se move na BR-3 / I love you baby, baby / Eu morro / Por isso tudo eu corro / Corro na BR-3... (ADOLFO, A. e GASPAR, T. / Sem referência de gravação).

A despolitização dos festivais, devido à repressão expressa na censura às canções e no exílio dos compositores, também contou com a participação da indústria cultural. Se os militares foram responsáveis pelos investimentos que garantiram um suporte tecnológico para o funcionamento de uma indústria cultural, no intuito de promover uma integração nacional — idéia central na ideologia da Segurança Nacional — e unificar politicamente as consciências, os empresários interessavam-se pela integração do mercado consumidor (ORTIZ, R. A Moderna Tradição Brasileira. Op. cit., p. 118).

Como a ideologia da Segurança Nacional é ‘moralista’ e a dos empresários, mercadológica, o ato repressor vai incidir sobre a especificidade do produto. Devemos, é claro, entender moralista no sentido amplo, de costumes, mas também político. Mas se tivermos em conta que a indústria cultural opera segundo um padrão de despolitização dos conteúdos, temos nesse nível, senão uma coincidência de perspectiva, pelo menos uma concordância. (Ibid., p. 119).

A censura é um artifício imanente às ditaduras e, no Brasil, foi o preço a ser pago até pelos empresários, já que o Estado controlado pelos militares era o principal incentivador do desenvolvimento capitalista. A busca de uma identidade nacional pelo Estado pelo viés da indústria cultural é reinterpretada em termos mercadológicos: a “nação integrada” é, antes, a interligação dos consumidores espalhados pelo país. Nesse sentido, o nacional identifica-se ao mercado.

Os festivais de MPB eram locais de resistência para público, compositores e intérpretes e também espaço para início da carreira destes; para os patrocinadores eram vitrinas em que exibiriam seus produtos. As músicas que se destacavam pelo conteúdo de denúncia sócio-política, conectando seus compositores à realidade, na lógica das gravadoras, eram vendidas como produtos no mercado.

Aproveitando-se do sucesso dos festivais, outros produtos eram ligados às músicas, às imagens contidas nas letras, aos instrumentos e aos próprios compositores e intérpretes. Para se ter uma idéia do alcance dos festivais — um dos principais produtos oferecidos pela televisão de então —, em 1959 o número de aparelhos em uso no Brasil era de 434 mil; em 1969 saltou para 4,36 milhões. Levando-se em conta que era comum a reunião de familiares, amigos e vizinhos em tomo de cada aparelho, o público receptor se multiplica.

Os festivais de MPB e suas músicas são apropriados como produtos retrabalhados e re-significados para vender outros produtos. É o caso da Petrobrás que, em 1969, lança uma campanha publicitária cujo mote é Aquele Abraço, aproveitando o título, a letra e as figuras da música de Gilberto Gil, feita às vésperas da partida do compositor para Londres.

Num momento em que o Estado e as multinacionais são os maiores investidores em publicidade, ironicamente o mesmo Estado que prende e depois expulsa do país, utiliza o trabalho de uma persona non grata para promover sua principal empresa. A lógica do mercado esvaziava, assim, qualquer intenção de politização na música.

O Rio de Janeiro continua lindo / O Rio de Janeiro continua sendo / O Rio de Janeiro, fevereiro e março / Alô, alô realengo / Aquele abraço / Alô torcida do Flamengo / Aquele abraço / Alô moça da favela / Aquele abraço / Todo mundo da Portela / Aquele abraço / Todo mês de fevereiro / Aquele passo / Alô banda de Ipanema / Aquele abraço / Meu caminho pelo mundo / Eu mesmo traço / A Bahia já me deu / Régua e compasso / Quem gosta de mim sou eu / Aquele abraço / Pra você que me esqueceu / Aquele abraço (...) Todo povo brasileiro / Aquele abraço (GIL, G. Á Arte de Gilberto Gil (LP Álbum). Gilberto Gil. São Paulo: Fontana (6470537), 1975).

Com o A.I.5, a atuação dos compositores fica restrita, pois o exílio e a censura prévia banem a possibilidade de apresentações e a participação em festivais. As agências de publicidade, vinculando refrões e imagens ligadas às composições, conseguem, pela ótica do mercado de consumo, a obediência que a ditadura não conseguiu com prisões e expurgos. Ao retrabalharem a canção numa linguagem, sobretudo visual, as agências descaracterizam-na, contribuindo para a despolitização das pessoas — tornados consurnidores —, anulando qualquer denúncia e colocando-a a seu serviço, estimulando vendas e, no caso das estatais, revertendo maiores lucros ao governo e fortalecendo-o.

(..) A produção de imagens fornece também uma ideologia dominante. A transformação social é substituída por uma transformação das imagens. A liberdade de consumir uma pluralidade de imagens e bens equivale à própria liberdade. A conota ção da liberdade de opção política em liberdade de consumo econômico exige a produção ilimitada e o consumo de imagens (SONTAG, S. “O Mundo-Imagem”. In Ensaios sobre a Fotografia. Rio de Janeiro: Arbor, 1981, p. 171).

Mesmo antes do A.I.5, essa relação entre festivais e patrocinadores já existia. Juca Chaves, tido como compositor talentoso, associou sua imagem a Abbey, o “whisky dos ‘experts’. Wilson Simonal, participante de vários festivais, até 1969 era garoto-propaganda da Esso; a partir daquele ano trocou o tigre da Esso pelo elefante da concorrente Shell (Revista Veja. São Paulo: Abril, ano II, n. 55, 24 de setembro de 1969, p. 58 e 59.)

Essa apropriação da música pela indústria de consumo, porém, não ficou restrita à MPB. As expressões e as figuras características da Jovem Guarda foram associadas a marcas de cigarros e à própria TV Record, responsável pelo programa dominical. Outra forma de associar um produto aos festivais era tê-lo utilizado pelos compositores e intérpretes. É o caso do violão, carregado de significados, pois representava a brasileira MPB em oposição às guitarras elétricas e instrumentos eletrônicos que abundavam no rock e no ié-ié-ié.

Com o sucesso dos festivais, as vendas de violão crescem consideravelmente, num primeiro momento devido à Bossa Nova e, depois, pelas interpretações marcantes de composições de Geraldo Vandré, Chico Buarque, Sérgio Ricardo e, no pré-tropicalismo, de Gilberto Gil e Caetano Veloso. É revelador o depoimento do presidente da empresa Di Giorgio, à época um estudante que engrossava o público dos festivais:

(...) A empresa... tinha uma linha diversificada de instrumentos, da qual a gente pode destacar cavaquinho, bandolins, viola, chegamos a fabricar até violinos, basicamente instrumentos de cordas acústicos. E após o advento da Bossa Nova e a era dos festivais, nós concentramos e passamos a fabricar somente violão ... Nós conseguimos criar uma imagem forte com o violão em função dessa estrada que nós trilhamos, a partir dos anos 60... Construímos este edifício onde você está agora com o resultado dessa grande venda que teve na época... E nós passamos de uma produção, pra você ter uma idéia, de 50 violões/dia que nós fabricávamos pra 150 violões/dia... A somatória do advento dos festivais com a Bossa Nova foi um divisor de águas para a empresa... foi uma coisa muito importante na época.(...) (Depoimento de Reinaldo Di Giorgio Jr, em 31 de julho de 1997, em São Paulo).

No caso do violão, se a MPB e a Bossa Nova contribuíram para acelerar sua popularização e consumo, a indústria reforçou uma tradição musical: um instrumento vendido como produto de consumo, nas mãos do consumidor torna-se veículo de memória, constituindo-se numa outra fresta por onde a MPB poderia penetrar e manter-se em movimento — sendo cantada e participando das experiências do público.

Fonte: MPB em Movimento - música, festivais e censura - Ramon Casas Vilarino - Editora Olho D'Água.