sexta-feira, março 30, 2012

Vagalume

Vagalume (Francisco Guimarães), jornalista e cronista, nasceu no Rio de Janeiro, RJ, em 1875, e faleceu na mesma cidade, em  9 de janeiro de 1946.

Filho de família pobre estudou e em 1887 tornou-se funcionário da Estrada de Ferro Dom Pedro II, onde começou suas atividades de jornalista, comentando os fatos ocorridos nas linhas.

Trabalhou em diversos jornais cariocas durante cerca de 50 anos. Foi pioneiro ao criar uma coluna sobre notícias carnavalescas no Jornal do Brasil, logo imitada por outros jornais, no qual assinava com o pseudônimo de Vagalume.

Publicou "Na roda do samba" (Rio de Janeiro: Tipografia São Benedito) em 1933, no qual contou a história do samba, de seus criadores e intérpretes mais importantes. O livro foi reeditado várias vezes pela Funarte.

Fontes: História e Historiadores da Música Popular Urbana no Brasil - José Geraldo Vinci de Moraes (USP); Dicionário Cravo Albin da MPB.

quarta-feira, março 28, 2012

Juvenal: a história viva do Samba

Muito bem conservado para 72 anos, a maior parte da vida consagrada ao samba, Juvenal Lopes hoje presidente de honra da Estação Primeira de Mangueira, conta a dramática história das escolas de samba. Todo emoção, relembra a perseguição da Policia, os ardis usados pelos sambistas para despistá-la, o sofrimento e danos que a dedicação ao samba lhe causaram: a casa perdida, a falta de direito à aposentadoria, um coração doente. — Tudo para não deixar o samba morrer. E, depois, ver o fruto dessas lutas e canseiras virar mercadoria de comércio...

A casinha em Abolição, janelas verdes, parede rosa, Juvenal Lopes fala de sua história, que é também a história do samba carioca. Nascido em São Cristóvão, o pai «presidente do grupo dos prontos», como ele diz, para dar idéia de sua pobreza, contava uns nove anos quando foi morar na Mangueira.

— Papai morreu. Minha mãe não agüentava o aluguel e mudou-se para a Mangueira. Com ela, eu e meus dois irmãos. Passamos a maior parte da infância trancados dentro do barraco, pois mamãe, trabalhando fora (empregada doméstica), não tinha com quem nos deixar. E havia o medo de no soltar pelo morra. Não saíamos para nada. A porta da rua marcava a fim de nosso mundo.

— Lembro que ela chegava, una lata de dois quilos na cabeça, Ali vinha nossa comida, as sobras da casa de seu patrão. Ao encontrar-nos à sua espera, chorava de alivio. Não sei por que ela tinha tanto medo do lugar.

Mas para um menino levado, louco para se aventurar ai por fora, o excesso de cuidados da mãe correspondia ao cárcere. Assim, mais crescidinho, Juvenal resolveu rebelar-se. Tão logo ela, saía, pulava a janela, fugia para o Buraco Quente.

— Ia me juntar ao pessoal do samba. Foi assim que tomei gosto pelo negócio. Ficávamos numa birosca, batucando em caixas de fósforo. Ali conheci Zé da Lúcia, Homem Bom, Saturnino (pai de Neuma), Osmar e tanta gente boa, a maior parte falecida, que nem vale apena enumerar. Eles foram, praticamente, os desbravadores do samba na Guanabara.

No lugar dos poetas

— Mais tarde, rapazote, deixei o Buraco Quente. Passei a freqüentar o Baixo Meretrício, onde, nos botequins, cantando samba, havia chance de faturar uns trocados.

Nesse ambiente Juvenal começou a divulgar o samba. Um medo terrível das pessoas que ali se reuniam, principalmente das mulheres que, segundo ele, eram mesmo de briga, dados a rasteiras e navalhadas. Cedo ficou conhecido como o cantor de Mangueira, nome que na época se ligava apenas ao morro. E quando começou a ganhar um dinheirinho bom, coletado em pires depois de cada apresentação, o sambista largou sua antiga profissão: ajudante de pedreiro.

— Tinha então uns 17 anos. De manhã trabalhava em obras. À noite, se fazia calor, vendia sorvete. Se frio, vendia jornais nos bondes. Dava um duro danado e ganhava quase nada. Cantando, chegava a conseguir 12 mil réis por noitada, uma fortuna para mim. Mas acabou logo...

Dois anos passados (1920), fui levado para o Estácio, o lugar dos poetas, pelo falecido Nilton Bastos. As coisas pretas. Andava de tábua no pé (agora chamam tamanco, e é até chique usar). Minha calça, coitada! Toda remendada, eu não sabia nem qual sua cor. Assim era a vida, do pobre. Miséria era miséria de verdade.

No Estácio, Juvenal conheceu Ismael Silva, Rubens Barcelo (o príncipe do samba) Alcebíades, Brancura, Francelino e muitos outros, hoje apenas saudades. Ali também começaram Sílvio Caldas e Carmen Miranda. Mas Estácio era somente o nome do lugar. O que eles fundaram foi um bloco, o Deixa Falar, de onde mais tarde saiu a escola de samba.

— O nome foi por causa de um rancho que havia perto. Eles se diziam a elite. Espalhavam que sambista era malandro, vagabundo. Principalmente porque no carnaval, a gente se fantasiava de mulher. Cansei de sair de Maria Antonieta. O pessoal do rancho metia o malho. O Deixa Falar foi nossa resposta.

— No Estácio fiz amizades, fiquei querido. De lá guardo boas recordações. Foi quando botei meu primeiro terno, aprendi a usar gravata e colarinho. Tudo de segunda mão, é claro! Umas roupas largas, que quando a gente experimentava, o vendedor, um gringo sabido, ficava puxando atrás, para dar a impressão de que estava certinho. E ainda falava, com a cara mais limpa, que ficou melhor do que se fossem feitas sob medida.

De time a escola de samba

O sambista fala da importância de se esclarecer a história do samba, sem deixar equívocos. Comenta a necessidade das escolas fazerem um trabalho escrito de suas origens, arquivando-o como documento histórico. E prossegue sua narrativa, contando como o bloco Deixa Falar se transformou na primeira escola de samba do país: a do Estácio.

— A princípio, o nome comum aos grupos que se dedicavam ao samba era time. Isso porque formávamos uma espécie de torcida organizada de determinado time de futebol. No Estácio, nossa paixão era o América. Dai as cores vermelho e branco.

A denominação de escola vai aparecer mais tarde, ali mesmo no Estácio, por uma única razão: a gente se reunia perto de uma escola normal. Como o samba era proibido, perseguido pela Polícia, quando se perguntava por algum sambista, para despistar, respondíamos que estava na escola, o ponto de referência. O negócio pegou a ponto da gente só entender o lugar como escola. Quando o Estácio cresceu, o time ficou conhecido como Escola de Samba do Estácio.

Para provar o que diz, Juvenal relembra alguns sambinhas da época. Um de sua autoria, em homenagem à vermelho e branco de então:

«Sempre vencemos, nunca perdemos.
O nosso time é do Estácio.
Vamos pra balança,
Não damos confiança...
Peso é peso, braço é braço... »

Outra de Cartola, feita para a Mangueira, onde aparece pela primeira vez a designação Estação Primeira, mais tarde incorporada ao nome oficial da Escola:

«Chega de demanda, chega.
Com esse time temos que ganhar.
Somos a Estação Primeira,
Salve o Morro da Mangueira. »

A perseguição policial

Apesar dos números blocos, o samba ainda era proibido. Consideravam-nos uma atividade marginal, malandros e vadios, da mesma forma que a capoeira.

— E nós, sambistas de coração, não podíamos deixá-lo morrer. Para isso, contávamos com o apoio dos umbandistas. Eles tiravam licença para instalar um centro de culto afro-brasileiro e deixavam a gente fazer samba lá dentro.

— Assim a gente confundia a polícia. Os Arengueiros, por exemplo, bloco que deu origem à Mangueira, surgiu do centro de Zé Espingueli, famoso pai-de-santo daquele morro.

— Foi o próprio Zé Espingueli quem organizou o primeiro concurso de samba de que se tem notícia. Só que era muito diferente do que se vê hoje. Ganhava aquele que tivesse sua música mais cantada. Afinal, o concurso era samba. Concorriam os Arengueiros, o Estácio, a Favela, os Unidos da Tijuca e o Osvaldo Cruz, mais tarde Portela.

— Mas era tudo clandestino. A Polícia perseguia mesmo. E quando pegava, batia de verdade. Lembro uma vez, numa festa de Xangô. Estávamos no barraco de Brasilino, pai-de-santo do morro do Urubu. Terminada a festa, um frio danado, a gente encolhidinha, pra espantar o sono e a fome improvisei um sambinha, quase um ponto de macumba:

Cruz Credo
Credo Cruz
Aí vem o delegado
Abelardo Luz

— Foi falar no Diabo e ele chegou mesmo. O samba o chamou. E o pior, é que ele gostou da música. Sujeito mau, fez a gente descer o morro debaixo de bengaladas e ir até Madureira, onde ficava seu distrito. Fomos cantando o samba, com harmonia. Se alguém desafinasse apanhava mais ainda.

— Naquela época, esse era o tratamento comum ao sambista. Depois, aos poucos, fomos nos organizando. Choramos muito, apanhamos, fomos presos diversas vezes. Esse foi o preço de manter o samba vivo: suor, lágrimas e sacrifício.

Enfim, Mangueira

Apesar de ter começado no Estácio, Juvenal nunca se afastou da Mangueira. Ali era seu lar. No Buraco Quente mantinha suas amizades. Conheceu todos os blocos que por lá passaram; Tia Tomásia, Tia Fé, Mestre Candinho e Arengueiros. Este último, segundo afirma, constituído por cinco famílias que se fantasiavam de baianas, no carnaval, deu origem à Estação Primeira em 1928. Anos passados, em 1962, o sambista assumiu a presidência da agremiação. Uma de suas primeiras providências foi incorporar Mangueira ao nome oficial da escola. Até então era somente Grêmio Recreativo Escola de Samba Estação Primeira. Também deve-se a ele a quadra onde hoje é o Palácio do Samba, e o cordão das pastoras nos ensaios, entre outras coisas.

— Quando assumi a presidência, os ensaios ainda eram na cerâmica, sem espaço para nada. Eu sabia que precisávamos de uma quadra, pois o samba é o único divertimento do favelado. Após muita luta, muita insistência, consegui com o Governo da época um local. Deram-nos o brejo onde o Estado pretendia fazer sua garagem.

Para arrumar tudo, coloquei dinheiro do meu bolso ali dentro. Perdi noites na cozinha, a preparar lanches para convidados e autoridades. Empregados era um luxo do qual não podíamos desfrutar. E não reclamo, nem me arrependo. Meu ideal era aquele. A vida nada valeria sem isso.

Em 1969 Juvenal Lopes deixa o cargo. Motivo? Doença. O coração não resistiu a tanta pressão. Da Mangueira seguiu direto para o hospital. Três meses no Instituto de Cardiologia, onde volta até hoje. Só de remédios gasta 50 cruzeiros em cada dez dias. O que ficou de toda sua dedicação ao samba, ele assim resume:

— Perdi minha casa. Fui obrigado a vendê-la para comer. Meu dinheiro ia todo para as obras na Escola. Perdi minha barraca de feira, a profissão à qual me dediquei grande parte de minha vida. Ela me deu condições de criar meus filhos. Hoje,, nem direito à aposentadoria tenho. O teto que possuo, meu filho Pedro Paulo me deu.

— E o pior de tudo, perdi minha saúde. Mas nada disso tem importância. Vejo a Mangueira de agora, grande, forte, rica, inigualável. Este é meu consolo e ela virou o que é graças, não a mim, mas ao povo que sempre soube amá-la.

Ajudado por Deus

Profundamente religioso, dizendo-se ajudado por Deus, Juvenal é um fiel devoto de Nossa Senhora da Conceição. A ela deve muito favores, inclusive a cura de sua perna, que ele conta, emocionado:

— Lá por 1940, tive uma doença na perna. Deu micróbio no osso da coxa, cheguei a ser operado. Andava de muletas, padecia de dor. Sete anos depois voltei ao hospital. O médico me desenganou. Falou que não havia cura, que eu tinha os dias contados. Saí de lá desesperado. Pedi ajuda a Nossa Senhora da Conceição. Ela me ouviu. Hoje nem das muletas preciso, apesar de uma perna mais curta.

Conformado com sua sorte, aceitando sem reclamar os desígnios de Deus, Juvenal é também compositor. Sambas a perder de conta, muitos vendidos em sua juventude, conseguiu apenas gravar quatro. Sua chance, no entanto, parece que chegou. A cantora Bete de Carvalho está interessada em alguns trabalhos seus, o que, para ele, além de ser maravilhoso, é uma grande surpresa.

— O compositor de morro não tem vez, pois a maioria dos cantores não se interessa pela boa música, mas pelo dinheiro. E eu tive que me conformar em escutar minhas músicas somente na minha voz.

Juvenal tem outra mágoa:

— As escolas se formaram para defender o samba. Os compositores do passado sofreram um bocado, porém não deixaram ele morrer. Mas as escolas subiram tanto que hoje o samba foi relegado a segundo plano. Não se fala mais dele. Apenas das escolas.

— Hoje vejo o samba como uma espécie de comércio. Há gente que vive da escola e poucos os que vivem para ela. Nós deveríamos amá-la. Mas isso não acontece. O que se verifica é cada um tentando tirar proveito da melhor maneira.

E sobre a invasão do povo nas escolas, ele diz:

— Samba é um divertimento. É música. E música não tem pátria ou nacionalidade.

O samba também é a vida de Juvenal.

— Sem ele – confessa – não posso viver. E quero morrer cantando samba, num desfile, no meio da alegria. Não quero tristezas e lágrimas. Quero muito samba, muita folia...

(Reportagem de Beatriz Santacruz)
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Fonte: A Notícia - 2. cad. - Rio de Janeiro - 18/07/1973

O Entrudo e o zé-pereira

Baile de fantasia no Cassino Fluminense com os figurões políticos em 1864 - "Semana Ilustrada"

A época do Carnaval varia de ano a ano porque está condicionada ao regime das festas móveis ou variáveis no tempo, estatuídas pela Igreja Católica Românica. A base de suas grandes solenidades rituais é a chamada Páscoa da Ressurreição, que jamais deve coincidir com a Páscoa dos judeus, na qual se deu, no mês de nizã ou março, a paixão de nosso senhor Jesus Cristo.

A fim de evitar essa coincidência em qualquer tempo, a Igreja, sabiamente, determinou celebrar a Páscoa da Ressurreição no 1º domingo posterior ao 14º dia da lua que vem após 21 de março. Se compreende isso desde que se tenha em vista que os hebreus se regiam por um calendário lunar e não pelo calendário solar adotado pelos povos cristãos. Assim, cronologicamente, a Páscoa da Ressurreição sempre cairá no 1º domingo seguinte à lua cheia imediatamente posterior ao equinócio da primavera, fixado no dia 21 de março.

Em virtude dessa determinação, se 21 de março for sábado e lua cheia, o dia 22 será o Domingo de Páscoa, caso em que este ocorre o mais cedo possível. Se a primeira lua cheia, isto é, o 14° dia lunar, após o equinócio, for 29 dias depois de 20 de março, por conseguinte, em 19 de abril e esse dia for domingo, o de Páscoa só poderá ser 25 de abril, caso em que ocorre o mais tarde possível. Daí se verifica que o Domingo de Páscoa ou Domingo da Ressurreição somente pode cair entre duas datas extremas: 22 de março e 25 de abril.

Ora, o Domingo de Carnaval, Domingo da Qüinquagésima ou Domingo Gordo cai sete domingos antes do da Ressurreição. Por isso, muitas vezes, se realiza o Carnaval em fevereiro e, noutras vezes, em março.

É o Carnaval festa de fundo pagão, com remotas raízes nos orgíacos festejos de Babilônia, denominados Sacae. Nele se dá liberdade ao instinto da carne: Carne Vale. Só a carne vale e se manifesta nessa comemoração dionisíaca. Ou o nome vem do carrus-navalis, carro naval de triunfo netuniano usado nesses festejos, que duraram em Flandres e na Alemanha até o século 13, relembrando as invasões dos normandos ou viquingues.

Mas, logo que seu tumulto se apaga, após três dias de intensa liberdade, a segunda e a terça-feira, a voz da Igreja, na Quarta-Feira de Cinza, lembra aos desvairados a fatalidade da morte: Memento, homo, quia pulvis es et in pulverem reverteris (Te lembres, homem, que és pó e ao pó voltarás). Assim é a terça-feira de Carnaval espécie introdução às cerimônias litúrgicas que se iniciam na Quarta-Feira de Cinza. Se dizia, em latim, que era o dia do Introitus, isto é, daquela introdução. A palavra introitus se corrompeu a entrudo e, por extensão, se passou a denominar, antigamente, ao Carnaval, Entrudo e, como era inveterado costume, se usar, durante ele, brincadeira com água, hoje a palavra tomou a acepção restrita de Carnaval molhado.

Nos bons tempos de antanho se atirava água, às pessoas que passavam na rua, das janelas e balcões das casas, com jarro, balde, bacia. Havia foliões que punham à porta de sua moradia pipas e tonéis cheios, nos quais, ajudados por outros, mergulhavam os transeuntes desprevenidos. Em compensação, depois do banho, lhes serviam quitute e bebida. Devemos considerar isso reminiscência dos antigos banhos lustrais ou de purificação ritual pra se entrar em vida nova. Ainda aí a palavra introitus encontra significativa aplicação. Perdido o sentido primitivo, esses banhos se tornaram mera brincadeira, às vezes finalizando em conflito e grossa pancadaria, quando quem era molhado a força não estava disposto a suportar o brinquedo, o achando, apesar da tradição, de péssimo gosto.

Ilustr. de Momo - Rio de Janeiro, 1862
Com o tempo o costume se amenizou, os baldes e tinas foram abandonados, se passando ao uso menos bárbaro de limões e laranjinhas feitos de leve camada de cera, recheados de água perfumada ou colorida, atirados, de longe, às pessoas descuidadas. Mais tarde, com a aplicação da borracha de seringueira ao uso industrial, as laranjinhas de cera tiveram de ser substituídas por outras do mesmo formato, porém com fino invólucro elástico. As vítimas desse entrudo não se aborreciam tanto com as que os ensopavam com água-de-cheiro como com as que traziam colorantes, que manchavam chapéu e roupa. Isso provocava rixa e barulho, muitas e muitas vezes com gravidade.

Se deram novos e melhorados meios pro entrudo. Se adotaram as pequenas bisnagas de borracha com canudo de metal ou de metal flexível, de vários feitios e tamanhos, as quais, apertadas pelos dedos, esguichavam, quase como um vaporizador, líquidos perfumados aos que tomavam parte na lide carnavalesca. Isso esteve em grande voga na era de 1900. Mas apareceram malvados que carregavam as bisnagas com molho de pimenta ou ácido fênico, produzindo queimaduras e até cegueiras. A polícia, então, proibiu, terminantemente, o uso de tais objetos.

Todavia o velho Entrudo teimava em não morrer, reformando seus processos e rejuvenescendo anos afora. Às bisnagas sucederam, inicialmente, os tubos de cloretil e, afinal, os de vidro e metal dos chamados lança-perfumes, que são coisa de ontem. Houve anos em que se gastaram tantos milhões deles nos carnavais cariocas que suas fábricas de França enviaram representantes especiais pra estudar as admiráveis condições desse mercado no Brasil. Se fundaram, depois, fábricas nacionais que exploraram essa lucrativa indústria. Finalmente, os viciados começaram a procurar no éter contido nos tubos de lança-perfume a embriaguez, quer nas vias públicas, quer nos bailes em recintos fechados, de modo que as autoridades se viram forçadas a proibir o uso.

Morreu, assim, já em nossos dias, metalizado, perfumado e industrializado o velho Entrudo nascido nas bacias e tonéis de água de nossos avós. Nos últimos tempos de sua existência tivera a colaboração inocente do papel colorido sob a forma de confete e serpentina, e de espanador pra fazer cócega, denominado mamãe-sacode.

O emprego de laranjinhas e limões-de-cheiro ou de água-de-cheiro começou no Rio de Janeiro, na época da independência. Se atiravam esses projéteis carnavalescos até nos teatros. As crônicas do primeiro reinado registram um episódio interessante, que ocorreu no então real teatro de São Pedro de Alcântara, no Rossio, hoje substituído por um monstro moderno de alvenaria e crismado como João Caetano. Foi no Carnaval do ano da graça de 1825.

A atriz Estela Sezefredo, então famosa, trêfega, muito jovem e muito divertida, ousou lançar um desses limões na pessoa de sua majestade, o imperador dom Pedro I, sendo, incontinenti, presa e metida nas grades do antigo Aljube, ao pé do morro da Conceição, pra, no silêncio e na solidão, meditar um pouco sobre a estouvada brincadeira.

Estela Sezefredo era natural do Rio Grande do Sul e começou a carreira como dançarina daquele teatro, tendo pronunciado o discurso na festa oficial de reabertura, em 1 de dezembro de 1824, quando ali se representou Engano feliz, de Rossini. Tendo vindo de sua terra natal com 12 anos de idade, em 1822, pois nascera em 14 de janeiro de 1810, contava somente 15 anos ao praticar a pequena loucura carnavalesca que a levou à cadeia. Deixou de ser bailarina e estreou como atriz com 23 anos, em 1833, na comédia Camila. Alcançou êxito ruidoso, desde então, no palco. Se casou com o grande ator João Caetano dos Santos, passando a se chamar Estela Sezefredo dos Santos. Enviuvou em 1863 e pretendeu, embora já maior de 50 anos, voltar a ganhar a vida como atriz, não obtendo mais êxito. Faleceu na maior miséria, em Niterói, em 13 de março de 1874.

O infatigável e probo historiador da cidade do Rio de Janeiro, Vieira Fazenda, desenterrou, da poeira dos arquivos, alvarás, avisos e posturas municipais sobre o Entrudo carioca desde o século 17. O Entrudo continuou aqui no século 18 mas com proibição absoluta, de acordo com as próprias ordenações do reino, do uso de máscaras e embuçados, sob penas variadas: Prisão, multa, açoite e até degredo.

O Carnaval de rua, com préstitos alegóricos, como o conhecemos, parece datar, no Rio de Janeiro, de 1854, ano em que se fundaram as duas primeiras sociedades carnavalescas da cidade: Veneziana e Sumidades Carnavalescas. Os primeiros bailes à fantasia realizados em 1846.

Durante o segundo reinado surgiu no Rio, e se alastrou nas províncias, nova modalidade do Carnaval, a zabumbada ou zé-pereira, antepassado dos cordões e Ranchos, com uma cantiga, cujo estribilho andava na boca de toda gente:

Viva o zé-pereira
que a ninguém faz mal!
Viva a pagodeira
no dia do Carnaval!


O criador desse novo Carnaval existiu de verdade. Era o português José Nogueira de Oliveira Paredes, sapateiro na rua São José 22, antigo caceteiro miguelista em Portugal, que ali participara das famosas rebeldias populares: A Patuléia e a Maria da Fonte, vindo, fugido dos liberais vencedores com dom Pedro I, dar com os ossos no lado de cá do Atlântico. Mal se anunciava o Carnaval e reunia uma dúzia de patrícios que comiam e bebiam à boa maneira lusitana e saíam ruas afora, batucando tambor, tocando zabumba e cantando:

Viva o zé-pereira
que a ninguém faz mal!
Viva a bebedeira
no dia do Carnaval!


A zabumbada de Paredes e seus companheiros obedecia a ritmo tão certo e espalhafatoso que ninguém podia imitar. Sua passeata nas ruas públicas atraía verdadeira multidão de acompanhante. Muitos pretenderam imitar, capitaneando bando de tocadores de bombo e outros instrumentos de pancadaria, mas sem que lhe levassem as lampas na famosa toada.

Vieira Fazenda nos dá conta da origem do nome de zé-pereira prà batucada de José Nogueira de Oliveira Paredes assim: "Uns dizem que, em certas localidades de Portugal, é o bombo conhecido por zé-pereira. Outros querem, e é mais provável, que, na primeira noitada de bom sucesso, os companheiros de Paredes, na força do entusiasmo e influenciados pela vinhaça, trocaram o nome do chefe e davam vivas a Zé Pereira em vez de Zé Nogueira".

Como quer que seja, Zé Nogueira ou Zé Pereira presenciou seu triunfo na ribalta, quando a célebre companhia teatral Heller levou, no Rio, a cena uma paródia dos Pompiers de Nanterre sob o título sugestivo de O zé-pereira Carnavalesco, tendo Paredes comparecido ao espetáculo de cartola e sobrecasaca, e chorando em público, de alegria.

José Nogueira ou Zé Pereira, criador do verdadeiro Carnaval de rua do Rio de Janeiro, inventor do rancho ou cordão, iniciador da batucada, morreu dum ataque de apoplexia na véspera dum carnaval, depois de examinar cuidadosa e carinhosamente, em sua oficina de sapateiro, os bombos e tambores de seu bando folião, instrumentos de sua fama, cuja integridade zelava com amor paternal e aos quais chamava, emocionadamente, meus queridos amigos. Fora, em verdade, o rei da batucada.

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Fonte: O Entrudo e o zé-pereira, Gustavo Barroso - Revista O Cruzeiro, 18/2/1950.

O samba espancado e esnobado

Quando a roda do samba estava bem animada, todos os componentes entoando o coro, certinhos, numa boca só, a polícia aparecia resoluta, descendo o chanfalho, pondo a turma em fuga desordenada. Isto, porém não a intimidava. Na noite seguinte, às vezes poucas horas após, no mesmo local (Saúde, Morro da Favela, arraial da Penha) refazia-se o grupo. Martelando os tamborins, rufando os pandeiros, as cuícas gemendo, Insistiam no samba que os meganhas interromperam. Era assim a época heróica, valente, não se deixando intimidar. Sua gente espancada, mas persistindo sempre.

Depois, já poupado pelos agentes da lei, podendo entoar sua musiquinha fácil e seus versos primários, espontâneos, os sambistas tinham o desprezo da burguesia. Esnobavam seus cantares e glosavam-no maldosamente: “Samba de negro / Não se pode freqüentar. / Só tem cachaça / Pra gente se embriagar”.

O samba mesmo assim venceu. Formou suas escolas e deslumbrou patrícios e estrangeiros. Como se não bastasse, parecendo pouco o triunfo alcançado, o samba agora tem um dia que lhe é dedicado, e com chancela legal: o 2 de dezembro.

O samba e seus “catretas”

Trazido da Bahia pelos filhos da boa terra que vieram se radicar no Rio de Janeiro, o samba foi logo por eles transmitido a seus descendentes em todas as modalidades que lhe são peculiares. Os pioneiros, em cujo número estavam Hilário Jovino Ferreira, Tia Sadata, Tia Bebiana, Cleto, João Câncio e muitos outros com foros de catretas (corruptela de catedrático) ensinavam, criavam continuadores. Em pouco tempo baianas e cariocas que os seguiam igualavam-se no samba, corrido ou chulado, mostravam-se exímios no partido alto que é, como intuitivamente se deduz, o samba requintado, o fino.

Sambistas autênticos, iniciados como o foram pelas próprias genitoras, ainda temos o Donga (Ernesto dos Santos) filho de Tia Amélia, e o João da Baiana (João Machado Guedes) filho de Tia Presciliana.

A despeito de seus já vencidos setenta anos, das inovações e das bossas que procuravam desvincular o samba de suas exatas origens, tentando mesmo distorções do ritmo e da melodia, ambos resistem. Permanecem fiéis ao samba puro, castiço, escoimado de artifícios de música e de cadência, como representativos da Velha Guarda onde também avulta o nome de Pixinguinha (Alfredo da Rocha Vianna Júnior).

Escolas põem o samba em desfile

Cessada a repressão violenta sob espancamento, já permitida sua existência nos terreiros dos morros, dos arrabaldes, nos desvãos da cidade, os intelectualizados foram ao encontro do samba. A imprensa se permitiu incluir em suas colunas o noticioso a ele referente e que alguns de seus repórteres (Vagalume, Orestes Barbosa, Enfiado, Marrom e poucos mais) o iam colher na fonte, no local. Vinham, a seguir, os livros com narrativas e informes: Na Roda do Samba, de Francisco Guimarães (o citado Vagalume) e Samba, de Orestes Barbosa. Tinha-se em letra de forma subsídios, um pouco da história do samba transmitida a quem O quisesse estudar ou simplesmente conhecê-lo.

Sempre em crescendo, o samba ia consolidando sua vitória. Os esnobes aceitavam-no, mostravam-se interessados pela música que já ouviam em casa na transmissão de seus fonógrafos, (mais tarde substituídos por fidelíssimas vitrolas) e depois nas emissões das rádios. Não bastava isso. As rodas denominaram-se pretensamente escolas e, com seus professores e alunos saíram em desfile com bateria e baianas. Fizeram a primeira exibição na Praça Onze de Junho, em pleno Carnaval, firmando tradição no logradouro.

Avançavam depois para o asfalto da Avenida Rio Branco juntando à exuberância rítmica de seus cânticos uma orgia de roupagens, de cores e de luz. O samba saía dos terreiros, descia dos morros e entrava avassalante, pomposo, rotulado de escola, na maior festa da terra carioca.

Do Congresso sai a “carta” e o dia

Longe o tempo em que vivia espúrio, esbordoado, e a indiferença da grã-finagem mantendo-o distante, o samba consciente de seu triunfo ousou a realização de um congresso. Levou-o a efeito no Palácio Pedro Ernesto (Assembléia Legislativa) de 28 de novembro a 2 de dezembro de 1962. Deu-lhe patrocínio não só a Confederação Brasileira das Escolas de Samba, mas também a Associação das Escolas de Samba e a Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro. Desse conclave resultou a Carta do Samba, redigida pelo folclorista Edison A. Carneiro onde além de se firmar “a preservação das características do samba” permitia-se seu progresso desde que não ferisse a tradição. Sugeria-se, por fim, tivesse o samba o seu dia.

Antecipando-se às resoluções do Congresso, o deputado Frota Aguiar, logo no início de novembro, apresentava a seus pares o projeto de lei n.° 681 instituindo “o dia 2 de dezembro como data consagrada ao samba”. Percorridos os trâmites da praxe a proposição subia ao governador do Estado para tornar-se dispositivo legal. A esperada sanção, no entanto, não foi obtida. Num despacho onde dizia “não há razão para considerar outro Dia do Samba, além dos três já dedicados à nossa festa popular”, o chefe do Executivo da Guanabara apunha o seu veto duro a formal.

Mas os sambistas, de rija têmpera, antes esbordoados e esnobados, viram triunfar, dias depois, o seu desejo com a rejeição da negativa. Derrubado o veto pela Assembléia Legislativa, tinha-se a conseqüente promulgação da Lei n.° 554 que desde então dava ao samba uma data, um dia.

(O Jornal, 29/11/1964) 
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Fonte: Figuras e Coisas da Música Popular Brasileira / Jota Efegê. - Apresentação de Carlos Drummond de Andrade e Ary Vasconcelos. — 2. ed. — Rio de Janeiro - Funarte, 2007.

terça-feira, março 27, 2012

J. Carlos

J. Carlos (José Carlos de Brito e Cunha), chargista e ilustrador, nasceu no Rio de Janeiro, RJ, em 18 de junho de 1884, e faleceu na mesma cidade em 2 de outubro de 1950. Também escultor, foi também autor de teatro de revista, letrista de samba, e é considerado um dos maiores representantes do estilo art déco no design gráfico brasileiro.

Seu primeiro trabalho foi publicado em 1902, na revista Tagarela, com uma legenda explicando ser aquele o desenho de um principiante, mas, em seguida, passa a colaborar regularmente com a revista e em abril do ano seguinte já desenha a capa da publicação.

Os trabalhos de J. Carlos apareceriam nas melhores revistas de sua época: O Malho, O Tico Tico, Fon-Fon, Careta, A Cigarra, Vida Moderna, Eu Sei Tudo, Revista da Semana e O Cruzeiro.

Fez histórias em quadrinhos com a negrinha Lamparina, mas seus desenhos mais conhecidos sãos as figuras típicas do Rio de Janeiro, os políticos da então capital federal, os sambistas, os foliões no carnaval e, principalmente, a melindrosa, uma mulher elegante e urbana que surgia com a modernidade do século XX.

Juntamente com Raul Pederneiras e com Kalixto formou o triunvirato máximo da caricatura brasileira da Primeira República.Além de variada, sua obra é bastante numerosa, sendo calculada por alguns em mais de cem mil ilustrações.

Nos anos 1930 J. Carlos foi o primeiro brasileiro a desenhar Mickey Mouse, estreando o personagem em capas e peças publicitárias na revista O Tico Tico.Também foi responsável pela capa primeira edição do Suplemento Infantil do jornal A Nação, suplemento criado por Adolfo Aizen.

Em 1941, Walt Disney visitou o Brasil, Disney ficou impressionado com o estilo de J. Carlos e o convidou para trabalhar em Hollywood, o ilustrador recusou o convite, porém enviou a Disney um desenho de um papagaio que serviu de inspiração para a criação de Zé Carioca.

J. Carlos sofreu uma hemorragia cerebral enquanto estava reunido com o compositor João de Barro, o Braguinha, discutindo a ilustração para a capa de seu próximo disco, e faleceu dois dias depois.

Fonte: Wikipédia.

Herivelto e o samba do Edredom

Nilo Chagas, Lamartine Babo, Dalva de Oliveira e Herivelto Martinss

A frase “se houver motivo, é mais um samba que eu faço”, constante de vitoriosa produção do compositor Zé Keti, define de maneira bem expressiva como comumente nasce a maioria das canções populares. Assim, simples edredon exposto na porta de uma casa comercial, buscando apenas comprador, tornou-se tema, foi motivo de samba.

Exatamente como ficou dito acima. Talvez ignorando que aquela peça de seu estoque estivesse na cabeça de um autor de musiquinhas fáceis, para o povo, sendo mote de poemeto despretensioso, de melodia acessível, O negociante a tenha vendido barato. Entregou-a por “preço de queima”.

Meses ou dias depois, adquirido o edredon (que era de fato vermelho como é cantado no samba) por um comprador ocasional, Herivelto Martins acrescia com ele mais um sucesso à sua bagagem musical. Não de maneira tão rápida como poderão supor, mas resultando de paciente trabalho de concatenação de versos à medida que iam brotando, as duas coisas, ao mesmo tempo. E, subindo a serra de Petrópolis, em meio de muitos passageiros, indiferente a todos eles, um compositor popular tinha um edredon na cabeça inspirando-lhe nova canção. Houvera o motivo acidental, ao acaso, e mais um samba estava sendo feito dentro de um trem e a muitos metros de altitude.

No princípio a cor e o violão

Embora Vasco Mariz em A Canção Brasileira registre como primeira música de Herivelto Martins o samba Da cor do meu violão, lançado em 1932, o que ele também confirma, parece haver equívoco de ambos. A produção que deu início à carreira do hoje bastante conhecido compositor foi — segundo sua entrevista ao Diário Carioca, em janeiro de 1933 — um outro samba, o Não importa a nossa cor. Nesse que teve a parceria de Francisco Senna, com quem veio a formar a primitiva Dupla Preto e Branco, cantava: “Que importa a nossa cor, / Se os corações são iguais. / Também tens o teu amor, / Sofremos a mesma dor, / Portanto somos iguais”.

Que tenha sido qualquer dos dois sambas, o exatamente primeiro na ordem cronológica das produções de Herivelto Martins (quase todos de sua autoria exclusiva), pouco importa. Computando em sua ficha na SBACEM (Sociedade Brasileira de Autores, Compositores e Editores de Música) de onde é presidente do Conselho Deliberativo, um total de mais de 700 composições, o importante é o êxito delas. Isto teria comprovação facílima recordando-se o sucesso obtido por muitas. Bastará, porém, citar-se a Ave Maria no Morro, já com a centena de gravações ultrapassada, para não haver dúvida quanto á qualidade de todo o repertório de Herivelto.

O edredon sai da cabeça para o samba

Morando na Rua Larga — que apesar de oficialmente ser a Avenida Marechal Floriano Peixoto, ainda tem válido seu antigo nome — Herivelto Martins freqüentava assiduamente o ponto dos compositores na Praça Tiradentes. Certa tarde quando para ali se dirigia, entre 1936 ou 1939, ao passar pela Avenida Gomes Freire, viu na porta de uma casa que vendia roupas de cama e mesa (próxima à agência postal ali existente) um pequeno cartaz. Oferecendo a mercadoria na qual estava afixado, dizia em letras maiúsculas e grandes: edredon. Mais abaixo, um pouco menor na grafia, constava o preço. Leu a palavra e achou-a bonita, vistosa: edredon.

Conseqüentemente, pelo impacto, assim como pelo agrado que causou, viu no vocábulo francês, de boa rima, o motivo para mais um samba. “Fiquei com o edredon na cabeça”, diz ele. No dia seguinte indo a Petrópolis, já com o alinhavo da letra e da música em formação, O edredon que estava em sua cabeça desde a véspera subiu a serra com Herivelto, mas, na descida, já havia se tornado em samba. Um pedaço de papel, um lápis e os versos foram sendo escritos, conduzidos pelo ritmo e melodia: Meu edredon vermelho, / Brilha que nem um espelho, / Reflete o rosto teu. / Quando te sentas na cama, / Sujas o tapete de lama, / Mas não faz mal, digo eu.

Era “samba pra mulher” e Jamelão recusou

Quando Herivelto se dispôs (ou conseguiu) gravar o Edredon Vermelho, em 1945 ou 46, convidou Jamelão para ser o intérprete. Primeiro cantou todo o samba e ao terminar perguntou ao José Bispo (este o nome de Jamelão) se ele queria pô-lo na cera. Elogiando a melodia, a letra, vaticinando o seu sucesso, recusava, no entanto, cantá-lo por ser “próprio pra mulher”. Foi então Isaurinha Garcia escolhida. Com sua voz bonita transmitindo o sentimento dos versos e ajuntando ainda o molho que lhe deu lugar de destaque em nossa música popular, assegurou o agrado da composição.

Motivado ao acaso, esse Edredon Vermelho, que começou na simples leitura de rotineira oferta comercial onde havia uma palavra sugestiva, tem história despida de artifícios alegóricos e bastante sincera. Ao contar honestamente, sem enredo falso, impressionante, que apenas um vocábulo de pouco uso bastou para sugerir-lhe um samba, Herivelto Martins mostrou a fertilidade de nossos compositores populares. Todos eles encontram nas ruas, no caminho, não apenas a pedra de que fala Carlos Drummond de Andrade, porém muita coisa que faz gerar uma cançãozinha alegre, brejeira.

Exatamente como o edredon que estava à venda na Avenida Gomes Freire e Herivelto depois de tê-lo na cabeça por algum tempo transformou-o em samba.

(O Jornal, 15/11/1964)
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Fonte: Figuras e Coisas da Música Popular Brasileira / Jota Efegê. - Apresentação de Carlos Drummond de Andrade e Ary Vasconcelos. — 2. ed. — Rio de Janeiro - Funarte, 2007.

segunda-feira, março 26, 2012

Os Geraldos e os cafés-cantantes

Os Geraldos
Como quase todos os cançonetista da época, o mulato gaúcho Geraldo Magalhães começou nos chopps e cafés-cantantes que, no fim do século passado (1898-99) e princípio deste contavam-se às dezenas aqui no Rio. Exibiu-se, assim, num que havia na Rua da Carioca, noutro existente na Rua da Assembléia e, ainda, no denominado Ao Chopp Grande, na Rua do Lavradio n.° 55. De permeio com essas exibições, fazia também suas serenatas abrindo a voz volumosa que possuía (razão de o classificarem como barítono) ao clarão da lua e acompanhado pelos indispensáveis violões.

Tornando-se figura conhecida da cidade, assinalava então sua verdadeira estréia teatral no Salon Paris da Rua do Ouvidor, onde com variado repertório de cançonetas e lundus conquistava demorados aplausos. Dali transferia-se (em 1900) para o Alcazar Parque, da Rua Teotônio Regadas, n.° 17, no Largo da Lapa, e formando par com a “castelhana” Margarita (ou Margherite) faziam grande sucesso com o Dueto do Buraco, malicioso, picante. No ano seguinte ia para o Moulin Rouge, sendo logo chamado a apresentar-se no Passeio Público, Maison Moderne, etc. Depois, já famoso e com Nina Teixeira, sua nova partenaire, também mulata e gaúcha, antes do término de 1908 estava em Paris.

“Vem cá, mulata”, “Vassourinha”, “Caraboo”, etc.

Cantando musiquinhas brejeiras, de ritmo gostoso e com versos algumas vezes de duplo sentido, outras exaltando o amor, glorificando paixões, Geraldo Magalhães conquistou logo a simpatia do público: continuou a merecê-la, e mesma vê-la aumentada quando já se denominando Os Geraldos, formou duo com Margherite, substituída por Nina e, mais tarde, pela portuguesa Alda Soares. De atraente presença cênica, aparecendo sempre de casaca, cartola e monóculo, ao lado da companheira igualmente elegante em vestidos cheios de lantejoulas e de cores bem vivas, dispunham a platéia a recebê-los com palmas.

Cessada a recepção festiva do público, a orquestra atacava os primeiros acordes e Geraldo cantava insinuante: “Vem cá, mulata!” Prontamente, no andamento da música, a companheira respondia esquiva: “Não vou lá, não! Sou democrata, De coração!”. Prosseguia o dueto nesse tom gracioso e ao término toda a assistência deixava claro seu pleno agrado aplaudindo com entusiasmo. Mostrando versatilidade, interpretando gênero diverso na continuação do programa, Geraldo cantava sozinho: “Ò minha Carabu. / Dou-te o meu coração...“. Voltavam os dois e, ele com a vassourinha, ela com o abanador, entoavam em diálogo a marchinha alegre: “Varre, varre minha vassourinha. / Abana, abana meu abanador”.

Nas “Orópicas” mostrando o maxixe do Brasil

Quando um transatlântico levou os dois cançonetistas ao Velho Mundo, a par de seu repertório alegre, saltitante, Geraldo e Nina tinham também como propósito lançar em Paris e Lisboa o maxixe brasileiro. Que lograram seu intento deu testemunho a Gazeta de Notícias, dizendo em 31 de janeiro de 1909: “No Rio ‘de Janeiro todo o mundo que se diverte conhece O Geraldo, o duo dos Geraldos, dois mulatinhos sacudidos que sabem dançar o maxixe com uma habilidade cheia de efeitos, que sacodem os nervos e alegram a alma...“. E concluía: “... Agora Os Geraldos estão em Portugal, fazendo um verdadeiro furor...“.

Vitoriosos na sua excursão ao estrangeiro regressavam e antes do desembarque recebiam convites de diversos empresários patrícios. Vinham elegantérrimos e por isso não escaparam à glosa da revista Rio Chic em seu número de 3 de abril de 1909: “... acham-se de novo entre nós o apreciado ator Leonardo e os cançonetistas Nina e Geraldo, este último, ao que parece, aproveitou bem a sua estada lá pelas Orópicas, quando nada, aprendeu a vestir-se e a usar luvas”. Ajuntava, ainda, com a mesma mordacidade: “Volta-nos com pose, rempli de soi même, como diria um parisiense”. Gracejo, piada improcedente, pois Geraldo, como assinalou Paulo Barreto em A alma encantadora das ruas, sempre “deitou elegância e botinas de polimento”.

Revivescência do Velho Rio

No momento, quando a atual Guanabara, herdeira das tradições do velho Rio, está se preparando para festejar seus quatrocentos anos, Almirante (Henrique Foreis) sugere que se traga ao Brasil o nosso Geraldo Magalhães. Informado de que o jamais esquecido cançonetista, nos seus gloriosos oitenta anos ainda vive em Portugal (Rua Anthero do Quental, nº 30, em Lisboa) lembra o quanto de ternura haveria em sua presença, aqui. Recordar-se-ia a Caraboo, o Vem cá, mulata, a Vassourinha e tantas outras cançonetas que Os Geraldos interpretavam provocando palmas de numerosas platéias em delírio, insatisfeitas, exigindo em alvoroço: bis!, bis!.

O velho Rio, do Alcazar, do teatrinho do Passeio Público, da Guarda Velha, da Maison Moderne, do Moulin Rouge, do Palace-Theatre e, principalmente, dos cafés-cantantes e chopps, seria revivido na figura do querido Geraldo. Ter-se-ia no programa de comemorações o evocativo da época bela e afrancesada com suas chanteuses a voix, chanteuses gommeuses e seus cançonetistas dos quais Os Geraldos foram, sem contestação, os mais autênticos representantes.

(O Jornal, 25/10/1964)
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Fonte: Figuras e Coisas da Música Popular Brasileira / Jota Efegê. - Apresentação de Carlos Drummond de Andrade e Ary Vasconcelos. — 2. ed. — Rio de Janeiro - Funarte, 2007.

domingo, março 25, 2012

Nosso Sinhô do Samba - Parte 5

Arquivos Almirante (Museu da imagem do Som)
Em grande parte das suas composições, Sinhô procurou fixar na pauta musical um fato, um acontecimento banal ou importante, um tipo da cidade. Foi o cronista melódico do Rio na década em que se viu vitorioso e se tomou figura marcante da então metrópole, para onde convergia tudo que havia de mais expressivo na vida nacional.

Sinhô contava amigos nas altas rodas. Desfrutava da intimidade de alguns figurões da época. E como todo bom carioca, deveria ser também político, isto é, ter as suas paixões e entusiasmos por nomes e vultos destacados do momento.

Uma das suas primeiras produções e das que obtiveram maior êxito foi o samba Fala meu louro, lançado para o Carnaval de 1920. Nos versos pitorescos o sambista alfineta Rui Barbosa. Depois da memorável campanha presidencial em que Epitácio Pessoa o derrotara, Rui discretamente se afastara da liça e se recolhera a justificado e repousante mutismo. Homem de tais proporções não poderia sair do cartaz.

Rui era o comentário de todos os dias, a notícia permanente, a caricatura infalível nas admiráveis revistas de sátira política do tempo. Por isso mesmo o ousado compositor o interpela graciosamente no seu grande samba, que logo se espalhou por todo o Brasil. É o Fala meu louro, também conhecido como A Bahia não dá mais coco, Papagaio louro e Quem é bom já nasce feito:

A Bahia não dá mais coco
para botar na tapioca
pra fazer o bom mingau
para embrulhar o carioca.

Papagaio louro
Do bico dourado
Tu falavas tanto
Qual a razão que vives calado?

Não tenhas medo
Coco de respeito
Quem quer se fazer não pode
Quem é bom já nasce feito.
(1)

A sátira feliz adocicava-se como o bom mingau com a nota estimulante e consoladora ao eminente derrotado. A expressão “coco de respeito” não era somente pitoresca, mas enaltecedora, como também o era o encaixe oportuno do dito popular:

Quem quer se fazer não pode
Quem é bom já nasce feito.


Com esse samba, Sinhô alargaria o caminho da sátira que serviria ao desfile de grande parte das cantigas populares do Rio. Mas a sua inclinação pelo comentário político ainda lhe criaria casos e ocasionaria aborrecimentos.

Com a marcha Fala baixo, Sinhô, embora disfarçadamente, faz alusões à política. A começar pelo título que é uma advertência sensata ante a censura policial da época. E nos versos as invocações a uma rolinha complicariam tudo, pois a palavra antes encontradiça na música popular tornara-se proibida. (2)

Quero-te ouvir cantar
Vem cá, rolinha, vem cá
Vem para nos salvar
Vem cá, rolinha, vem cá


O estribilhista emérito, conhecedor atilado do gosto popular, conseguiu notável êxito com essa marcha, (3) lançada ruidosamente nos festejos da Penha, em outubro de 1921. Mas nem tudo seriam glórias, e Sinhô foi depois procurado pela polícia e teve que se refugiar na casa de sua mãe, D. Graciliana, então moradora na Rua do Engenho de Dentro, 95.

Na história musical do compositor ocorreria fato mais sensacional. O seu samba Macumba (Gegê), lançado em 1922, seria interceptado pelo Estado Novo, de execranda memória, quase vinte anos mais tarde, porque nele se continha a palavra Gegê, de origem africana, e já então apelido popular e carinhoso do ditador Getúlio Vargas. O disparate era maior porque nada havia de ofensivo nos versos simples do compositor falecido em 1930, e considerado subversivo post-mortem:

Ai Gegê
Meu encanto
Eu só tinha medo
Se não tivesse um bom santo.


As cautelas policiais estadonovistas preferiram modificar o sambinha que ficara. E a palavra desrespeitosa — Gegê — foi substituída nas emissões radiofônicas por Ieiê ou meu bem...

O samba Fala meu louro igualmente gerou incidente policial-militar. Na Bahia, segundo nota publicada na Revista da Semana, em 29 de maio de 1920, numa festividade pública em Salvador, estudantes solicitaram à banda de música do 19º Batalhão de Caçadores que executasse o samba popularíssimo. Um tenente se julgou agravado e com várias praças reagiu à insolência. Mas, ao que parece, não houve mortos nem feridos.

Sinhô era um registrador sonoro dos acontecimentos que agitavam a sua cidade, o Rio da década de 20, por ele vivida tão intensamente. A capital federal naqueles anos contava pouco mais de um milhão de habitantes.

Em 1921 e até começos de 1922, torna-se famoso na crônica policial um bandido que era o terror do morro da Favela, alcunhado de Sete Coroas. Parece que o apelido se originara de um roubo que ao início da sua vida de marginal fizera de algumas coroas de um túmulo! Depois outras ocorrências e crimes lhe aumentaram o sinistro cartaz e o celerado tanto era temido quanto popular. Sinhô que já encaixara Rui no samba, aproveita a fama de Sete Coroas, de quem era amigo, e lança o samba perfil do criminoso. Obedecia assim ao impulso que o movia de perpetuar o fato na pauta musical:

É noite escura
Iaiá acende a vela
Sete Coroas
Bam-bam-bam lá da Favela.

E a polícia
Já tonteou
Sete Coroas
Meia dúzia já matou.

E o homenzinho
É perigoso
Sete Coroas
Nasceu no Barroso.


Sinhô deveria ter pretendido apenas aumentar a fama do valente, numa exaltação da sua coragem. Mas, como bem observou Almirante, ao invés de glorificar o salteador, tornou-o mais temido, aumentando o terror da sua figura e das suas façanhas.

Consta que Sete Coroas certa vez figurou num bloco carnavalesco organizado pelo sambista. A admiração deste seria natural posto que perigosa homenagem ao valente. O mesmo fascínio que os cangaceiros famosos exerciam junto a rapsodos nordestinos que lhes exaltavam feitos, aventuras, lutas e perversidades, nos romancetes rimados. Essa glorificação do valente seja ele um salteador ou um herói, é uma constante nos poetas e artistas do povo.

A fixação do fato ou da notícia na solfa é aspecto a realçar na produção de Sinhô. Seria ele nos dias de agora um compositor participante no melhor sentido da palavra, um tanto baratinada. Seus sambas e marchas não davam somente títulos às revistas teatrais; serviam como legendas de caricaturas famosas. J. Carlos estampou na Careta uma caricatura de Rui vociferando, enquanto uma velhota que representa a Convenção lhe solfeja:

Fala, fala, fala
meu bem
Eu não digo nada a ninguém.


Eram os versos primeiros do samba Confessa meu bem, grande êxito de Sinhô no Carnaval de 1919.

Qualquer acontecimento, incidente trivial no cotidiano da cidade servia ao compositor para o registro melodioso. De 1919 é o samba carnavalesco Tirando o retrato, a que não faltava o subtítulo — Nascimento, oia ele — no qual parece comentar algum fato ocorrido talvez na ladeira do Barroso:

Nascimento, oia ele
Que qué me dá
Por causa de um retrato
Que na ladeira não quis tirá.


Modas e costumes não escaparam à glosa musical de Sinhô No Carnaval de 1924 satirizava a moda de cabelo feminino aparado à inglesa, no samba Já-já:

O tal cabelinho à inglesa
Eu mandava raspar já-já
Depois lixava a cabeça
Até ela gritar ‘chegá!’


Embora fosse mais da música que do verso, temos que destacar no compositor a identificação permanente com o povo, a sua facilidade de transmitir-se através de expressões pitorescas que inventava ou de que se apropriava, ajustando-as magistralmente nas melodias nem sempre totalmente originais. Por vezes é esquisito na sua temática. Quase hermético para os de hoje. É que arrumava no verso e na pauta não somente queixas e recriminações como também as suas mágoas e alegrias, os seus amores e frustrações e, sobretudo os fatos banais e até o anedótico nem sempre publicável. Tal como no Caneca de couro (1925), no qual o título se entende picarescamente como o sexo da mulher:

É modo agora quando ferram o namoro
Beberem água na tal caneca de couro.

História antiga que está em moda
É raro aquele que não dá uma mão na roda.

Quem provoca e gosta fica doido e vira lobo
Fica maluco faz papéis até de bobo.


Em 1926 noutro samba — Pega-rapaz — volta a referir-se à moda de então:

Ó menina
Que moda é essa de seu vestido
Oi!
Curto na frente, comprido atrás
Isto é moda de pegar rapaz.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Ó menina
Que moda é essa de seu cabelo
Oi!
Curto na frente, raspado atrás
Isto é moda de pegar rapaz.


A Festa da Penha, campo em que venceu muitas batalhas, não poderia ser omitida no repertório de Sinhô. De 1926 é o seu maxixe Viva a Penha!:

E viva a Penha, e viva a Penha
De amores estou farto
Quem tiver dinheiro venha.

Isto é promessa
Que fiz à Santa
Pois o dinheiro
Tudo suplanta.


No mesmo ano lançaria o samba Corta-saia, em cujos versos se refere a vários acontecimentos ou motivos. Além de envolver uma bicharada, alude à música de pretos (provocaçãozinha). E no estribilho mais uma vez se reafirma na junção de frases populares admiravelmente agrupadas, fazendo sentido. Também aproveita o dito da época: É lá!:

É lá! É lá!
Que o gato arranha a gente
Tem serpente, cobra macho
Tem até bicho demente.

Se a moda pega
Do corta-saia
Acerta o passo
Cai no mangue
E sai da raia.

É lá! É lá!
Que o mestre é um macaco
Dança o urso e o elefante
Enquanto o burro cose o saco.

É lá! É lá!
Que tocam três tercetos
Deixa de haver função
Se o conjunto só der pretos.

É lá! É lá!
Que a zebra faz vergonha
Mal começa a trabalhar
Põe-se aos beijos com a cegonha.


Quando o urbanista Alfred Agache veio ao Rio, a convite do prefeito Prado Júnior, para levantar o plano da cidade, falou-se muito na demolição do morro da Favela. Estabeleceu-se o pânico entre os moradores do celebérrimo local. Sinhô correu em defesa da sua gente e compôs o belíssimo samba A Favela vai abaixo (1927):

Minha cabrocha, a Favela vai abaixo
Quanta saudade tu terás deste torrão
Da casinha pequenina de madeira
Que nos enche de carinho o coração.

Que saudades ao nos lembrarmos das promessas
Que fizemos constantemente na capela
Para que Deus nunca deixe de olhar
Por nós da malandragem e pelo morro da Favela.

Vê agora a ingratidão da humanidade
O poder da flor sumítica, amarela,
Que seu brilho vive lá pela cidade
Impondo o desabrigo ao nosso povo da Favela.


Luís Peixoto, que foi amigo dileto de Sinhô, lembra que segundo versão corrente, talvez espalhada pelo próprio sambista, este vendo cada vez mais forte a ameaça da derrubada do morro, resolveu ele mesmo se fazer intérprete dos moradores e valendo-se do seu prestígio popular foi à presença de um ministro de Estado a quem pediu para interceder junto ao prefeito, no sentido de não efetivar a demolição. O ministro gracejando com o compositor pediu-lhe para formular o pedido em samba. Sinhô aproveitou imediatamente a deixa e cantou baixinho A Favela vai abaixo, ainda não bastante divulgado. O ministro sorridente e algo emocionado prometeu interferir. E quem sabe se não o fez? Porque o morro lá ficou.

O último samba que compôs à véspera da morte, estranhamente extraviado, era O Homem da injeção, que focalizava recente caso policial em que estivera envolvido o capitalista Denizot. Um homem aparecera e em plena rua aplicara injeções num transeunte a quem seguira. O fato merecera abundantes registros dos jornais. Sinhô passou a sua última noite quase toda em claro compondo o samba. Teria projetado a vinda ao centro da cidade, na tarde em que morreu na barca, trazendo no bolso o seu último trabalho, infelizmente desaparecido do seu paletó. Seria o derradeiro comentário do pitoresco cronista musical do Rio.

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(1) Fileto Moura, que foi íntimo de Sinhô, acha que o samba foi inspirado num velho papagaio que o compositor tinha em casa. Embora a honestidade do informante, nunca me pareceu fundada a versão, que chega a ser ingênua. Os demais versos da letra são claros, principalmente a última estrofe. (2) Rolinha era o apelido injurioso dado a Artur Bernardes por jornais do Rio. (3) Marcha e não samba como por equívoco tem sido citada.

Fonte: "Nosso Sinhô do Samba" / Edigar de Alencar - Edição FUNARTE - Rio de Janeiro 1981.

sábado, março 24, 2012

Zé Caradípia

Zé Caradípia (José Luiz Fernandes), compositor, cantor e violonista, nasceu em Canoas, RS, em 19/2/1956. Ingressou no cenário artístico de Porto Alegre em 1976, como integrante do grupo Cordas & Rimas.

Ao longo de sua trajetória, participou de eventos culturais, festivais de música, feiras e mostras musicais pelo Brasil. Apresentou-se em teatros do Rio Grande do Sul (OSPA, São Pedro, Renascença, Álvaro Moreira, Araújo Vianna), Santa Catarina, São Paulo, Paraná, Rio de Janeiro, Goiás e Pernambuco, além de Itália, Suíça e Alemanha.

Na década de 1980, obteve reconhecimento nacional como o autor de Asa morena, gravada com sucesso por Zizi Possi. A canção foi citada como destaque no ano de 1982 no livro “A Canção no Tempo”, de Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello.

Em 1996, lançou seu primeiro CD, Onda Forte (Independente), contendo suas composições Recado brasileiro, Esses negros, Apocalipse nouveau, Ouriço d'olho, Pandora, Otrelon Tele, Música gozada, Canção do lado emocionado, Diamante, Tu blues, Calor de outono, Após bares e a faixa-título, além de Asa morena.

Em 2001, lançou o CD Retina da alma, gravado ao vivo no Teatro Renascença, em Porto Alegre, registrando canções próprias: Samba da amoreira, Vermelho paixão, Que seja assim, Carinho aos quatro ventos, Enfeitiçada, Esses moços, Perfume exemplar, Retina da alma, Chuva de outono e Madeixa.

Apresentou-se, nesse mesmo ano, em Buenos Aires, juntamente com outros artistas porto-alegrenses, no projeto de intercâmbio cultural realizado através da Secretaria Municipal de Cultura de Porto Alegre com a Prefeitura de Buenos Aires. Nesse mesmo ano, participou, como intérprete, do CD Paralelo 30 – ontem e hoje, coletânea independente de música popular do Rio Grande do Sul, ao lado de Bebeto Alves, Claudio Vera Cruz, Gelson Oliveira, Nelson Coelho de Castro e Raul Elwanger. O disco foi contemplado com o Prêmio Açorianos, na categoria Melhor Disco de MPB de 2001.

Em 2003, lançou o CD Pintando falas, com show no Theatro São Pedro, em Porto Alegre. No repertório, a regravação de Asa morena, além de Na ribanceira, No riso das crianças, Sara cigana, Céu azulão, Cissa, Tâmaras frescas, Via cristalina, Tudo ali e Olhos claros.

Teve canções gravadas por intérpretes gaúchos, como Loma (Enfeitiçada e Corpo a fora), Nanci Araújo (Vermelho Paixão) e Flora Almeida (Estrela nova).

Obras

Apocalipse nouveau, Após bares, Asa morena, Calor de outono, Canção do lado emocionado, Carinho aos quatro ventos, Céu azulão, Chuva de outono, Cissa, Diamante, Enfeitiçada, Esses moços, Esses negros, Madeixa, Música gozada, Na ribanceira, No riso das crianças, Olhos claros, Onda forte, Otrelon Tele, Ouriço d'olho, Pandora, Perfume exemplar, Pintando falas, Que seja assim, Recado brasileiro, Retina da alma, Samba da amoreira, Sara cigana, Tâmaras frescas, Tu blues, Tudo ali, Vermelho paixão, Via cristalina.

Discografia

(2003) Pintando falas • Agevê Music • CD
(2001) Retina da alma • Independente • CD
(2001) Paralelo 30 - Ontem e hoje • Independente • CD
(1996) Onda forte • Independente • CD

Fonte: Dicionário Cravo Albin da MPB

Funeral de Calça Larga

Joaquim Casemiro
Quando um sambista ao invés de “exalar o último suspiro” (como é das praxes no preciosismo da formulação literária) apenas, no seu linguajar pitoresco, “abotoa o palitó”, o sentir de sua gente não entristece a música. Os tamborins, os pandeiros, continuam a ser batidos na mesma cadência, apenas sem o allegro empolgante, de alvoroço. O seu funeral se faz com tristeza, pesarosamente, mas sem a lamúria em cantochão do requiem e do de profundis.

Foi exatamente assim, que no rito da tradição, o Salgueiro acompanhou o mano Calça Larga (Joaquim Casemiro), levado num bonito envelope ao cemitério da suja e poeirenta praia do Caju. Sentia-se a perda do animador da Escola, do crioulo gordo e afável que nas horas precisas sabia dizer um discurso simples, porém cativante. Não havia, no entanto, o alarde do choro alto, gritado. O samba foi com ele, em funeral ritmado em bemól, quase sussurrado, com uma cuíca gemendo baixinho. Mas não houve, de modo algum, o lamento soturno, de música dorida.

O pedreiro Casemiro

Trazendo nos seus trecos a necessária colher de apanhar e espalhar a argamassa, ferramenta de sua profissão, Joaquim Casemiro chegou ao Morro do Salgueiro no não muito longe ano de 1932. Gordo, com sua calça de boca de sino cobrindo o sapato, e à qual devia o apelido trazido de Miracema teve, no seu jeito comunicativo, falante, boa acolhida. Fez logo amigos: o Anacleto Português, o Alfredo Bolinha, o Servan de Carvalho, o Paulinho de Oliveira, o Mano Galego, o Sílvio da Ladeira, o Nestor e muitos outros. Com eles entrou nas primeiras rodas de samba, formou nos primeiros blocos, nos primeiros sujos do Carnaval.

Pouco depois, abandonava o ofício, deixava de ser um Waldemar do samba (fazia casas e não tinha onde morar) e tornava-se soldado do Exército. Habilidoso, encaixando-se bem na dureza da disciplina do quartel, conseguiu rapidamente pregar na túnica as duas lagartixas da graduação de cabo. Ganhava também, ao mesmo tempo, a proteção do coronel Barros, do Serviço de Intendência, de quem passou a ser peixinho. Com isso, conseguia algumas dispensas e noites livres para com seus amigos do morro ir aos bailes do Lyrio do Aragão, do Sul América, do Elite.

Das “pastorinhas” para o samba

Antes de ser o sambista que morreu consagrado, com voto de pesar no Parlamento, deputados carregando seu esquife e discurso de governador à beira da sepultura, Calça Larga organizou e animou ranchos de pastorinhas. Com Alfredo Bolinha e Anacleto Português (seu compadre e grande amigo), na época do Natal arregimentava as crianças do morro e descia para as visitas aos presépios. Em marcha lenta entoavam os cantares ingênuos: “ ... viemos de Belém saudar Nosso Senhor, o Nosso Salvador...“ E, à frente do grupo, recomendando ao velho que tremesse apoiado no seu bastão, pedindo à borboleta que cantasse mais alto, comandava o Calça Larga.

No começo de janeiro, quando as batalhas de confete iam criando o ambiente para a Rua Dona Luíza e Dona Zulmira, o Calça Larga participava deles. Vinham do morro os blocos (depois classificados de escolas) sem denominação e apenas designados por suas bandeiras: o Verde e Amarelo, o Azul e Branco e tantos outros. Resolveu, porém, a polícia embargar o que tinha as “cores brasileiras” e eles as mudou passando a ser o Verde e Branco. Com sua bateria, suas baianas, desfilou diante do coreto da comissão. Dirigindo a moçada lá estavam o Calça Larga, o Anacleto, o Paulinho, o Servan.

Um morro cheio de “escolas”

Passando os grupos e rodas de samba dos morros, dos bairros e dos subúrbios a ter a denominação de Escola (termo que foi lançado no Carnaval, em 1908, pelo renomado rancho Ameno Resedá) os do Salgueiro prontamente a usaram. Assim, em 1935, ali existiam as Unidos do Salgueiro, Depois eu Digo, Azul-e-Branco, que participavam de um concurso promovido pelo jornal A Nação e disputado na Praça Onze de Junho. Dispersava-se, como rivais, um punhado de sambistas, que embora defendendo a expressão musical do morro tijucano, não poderia mostrar sua força total.
Joaquim Casemiro, o popular Calça Larga


Acertadamente, pondo de lado as diferenças que separavam os componentes das diversas escolas, houve a unificação de todas elas e surgiu como única representativa do morro a Acadêmicos do Salgueiro hoje existente. Essa fusão, acertada e que resultou em maior brilho para o atraente desfile do domingo de Carnaval, foi, é claro, obra meritória de alguns sambistas. Em meio deles, porém, estavam o Calça Larga, o Paulinho e o Anacleto, este sempre ligado ao seu compadre Casemiro. O morro de muitas escolas passou a ter uma só, verdadeiramente representativa e com foros de academia.

“Quero morrer no samba”

Sambista, de pouco ou nenhum tutu armazenado nos bancos, Calça Larga jamais pensou em ordenar disposições testamentárias para acautelar a patroa, e a sua prole de quase uma dezena de meninos. Muito menos pediu, ou insinuou o desejo de ter funeral solene com réquiem e de profundis lamentosos. Apenas, e isto ele dizia cantando os versos de Walfrido Silva em 1935: “Quero morrer cantando um samba, no meio de uma roda bamba”. Ou na versão de Ataulpho Alves, anos após: “Quero morrer numa batucada de bamba, na cadência bonita do samba”.

Conseguiu como era de seu anelo proclamado em música e ao ritmo de bateria certa, afinada, a morte que o consagraria: no terreiro do samba, apito na boca, o boné vermelho e branco, nas cores de sua querida escola. Deixou triste, inconsolável, a moçada a quem ele, gordo, gingando o quanto permitia sua volumosa barriga, comandava: “no peito!... numa boca só!...“.

E, tal como disse o governador, o chaveiro S. Pedro deve tê-lo acolhido assim, com intimidade: “Entre, Calça, você é um dos nossos”.

(O Jornal, 20/9/1964) 
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Fonte: Figuras e Coisas da Música Popular Brasileira / Jota Efegê. - Apresentação de Carlos Drummond de Andrade e Ary Vasconcelos. — 2. ed. — Rio de Janeiro - Funarte, 2007.

Cidade Maravilhosa não nasceu hino

André Filho
Cidade Maravilhosa não nasceu hino nem com pretensão a tal. André Filho, o autor, compositor de música popular, já trazendo em sua bagagem alguns sucessos, concebeu-a, como se depreende da letra e ritmo, na característica apenas de alegre marchinha glorificante. O agrado que prontamente logrou, graças à espontaneidade de sua melodia e de seus versos, tornando-a popularíssima, acabou, no entanto, dando-lhe o galardão de hino. Não dentro da exegese de uma temática musical e poética, mas pelo seu exato sabor de glorificação simples, sem rebuscamentos, exaltando apenas a cidade que a inspirou.

Depois, consolidada pela preferência popular, a marchinha ganhava diploma legal, concedido pela vereança carioca, e que determina sua adoção “como marcha oficial da Cidade do Rio de Janeiro”. Conseqüentemente, embora não havendo rígido preceito obrigatório, dá cunho de solenidade à sua execução no início e término de bailes e festas, afora sua utilização como prefixo de programas de rádio e televisão. Havendo, ainda, acrescida ao seu sucesso local, a ampla divulgação que tem no exterior através de múltiplas gravações, inclusive na China, com a respectiva adaptação de seus versos.

Uma frase que “pega”

A rigor, no cotejo cronológico, não foi (como bem esclarece Almirante em No tempo de Noel Rosa) o compositor Antonio André de Sá Filho o criador da frase “cidade maravilhosa”. Paulo Coelho Netto, por justiça e direito, apontou e reivindicou para seu pai a paternidade da feliz denominação, pois ela é encontrada num artigo do consagrado escritor publicado por A Notícia em 1908. Mas, inegavelmente, quem a reviveu, em 1932 a 1934, foi o locutor César Ladeira quando lia diariamente, crônicas escritas por Genolino Amado focalizando aspectos do Rio e subordinadas à epígrafe Cidade Maravilhosa.

A cuidadosa dicção, a pronúncia propositadamente escandindo as sílabas da frase que dava motivo às apreciadas digressões literárias interpretadas por tão excelente speaker, fizeram a denominação correntia e usual. A denominação de maravilhosa dada ao Rio de Janeiro pegou de galho como se diz na gíria. Daí ocorrer a um musicista (no caso André Filho) que dedica as suas produções ao êxito popular, tomá-la como tema para uma marchinha alegre, despretensiosa, com o fito de exaltar a sua cidade “cheia de encantos mil!”. Feita com habilidade, tendo todos os predicados para ser apreendida facilmente, foi cantada por todo o povo e acabou obtendo as prerrogativas de um autêntico hino.

Pretendeu ser carnavalesca

Lançada em outubro de 1934, na interpretação de Aurora Miranda e do próprio autor, que além de tocar piano tinha boa voz, alcançou boa vendagem em discos da Odeon, promotora de sua gravação. André Filho achou, pois, oportuno destiná-la ao Carnaval de 1935. Inscreveu-a num concurso patrocinado pela Municipalidade, mas o júri desse certame deu a primeira colocação a Coração Ingrato, marchinha de parceria Nássara (Antonio) e Frazão (Erastótenes). Não obstante Cidade Maravilhosa apareceu com destaque na parada musical dos festejos de Momo e devido a seu espírito de exaltação do Rio continuou sendo muito executada e tendo novas roupagens orquestrais.

A princípio sua preferência era ditada apenas pela melodia convidativa, entusiástica, onde os versos entravam certinhos e puxados pelas rimas ricas, fáceis: “encantos mil” sugerindo logo “coração do meu Brasil”. Depois, seguindo um curso crescente de popularidade deixava de ser a marchinha que seria apenas carnavalesca como pretendeu seu autor, e tomava ares de uma canção glorificante muito grata aos cariocas. Não se impunha que a tocassem nos bailes, nas programações das emissoras de rádios ou se fizesse sua inclusão nas revistas teatrais, mas O agrado público e notório dava-lhe preferência clara intuitiva.

Furando as fronteiras

Vitoriosa na metrópole que a inspirou, entoada com ênfase para ter valorizada sua letra, a marchinha Cidade Maravilhosa despertava o interesse de arranjadores, de gravadoras, de editoras musicais. Um sem número de edições em discos e partituras foram surgindo e começaram a ser exportadas. Ao mesmo tempo, orquestras de outros países assimilavam a tessitura musical da marchinha e, mesmo sem alcançar a vivacidade do ritmo, o andamento brasileiro, faziam sua divulgação, davam-lhe foros de internacional.

Viajando para os Estados Unidos, onde triunfava sua irmã Carmen, Aurora Miranda ali encontrando o famoso Bando da Lua fez nova gravação da marchinha de André Filho, repetindo o êxito da primeira. Viu então propagar-se por toda a nação amiga, já bastante interessada pela música do Brasil, em adaptações várias que iam da Beautifull City à aportuguesada Cidade Morravilhóse, a canção onde o Rio era exaltado. Assim, quando uma das bem informadas press nos trouxe a notícia de que Cidade Maravilhosa havia sido gravada na China, não houve surpresa, mas apenas orgulho e vaidade pelo sucesso de nossa música.

Marcha Oficial e quase “hino”

Já consagrada, tendo adquirido pela popularidade o feitio de hino do Rio de Janeiro, Cidade Maravilhosa com a criação do Estado da Guanabara ganhava, em 1960, a honraria definitiva. Um decreto resultante de indicação do saudoso vereador Salles Neto determinava em seu artigo primeiro: “Fica adotada como marcha oficial da Cidade do Rio de Janeiro, respeitados os respectivos direitos autorais, ex vi da legislação em vigor, a marcha Cidade Maravilhosa de autoria do compositor André Filho.”

Na ocasião o musicista, como infelizmente ainda agora, encontrava- se enfermo. Um repórter do Diário da Noite levou-lhe a grata notícia de sua marchinha no Hospital da Ordem do Carmo e, jubiloso, é claro, mas humilde e sem vaidade, ele a recebeu. Disse que o ato o animava a prosseguir e anunciou já estar elaborando uma nova composição intitulada Brasil, coração da gente.

Não conseguiu, mesmo doente, esconder a emoção que sentiu ao ver a sua Cidade Maravilhosa obter o laurel de marcha oficial o que, reconheça-se é quase a mesma coisa que ser hino.

(O Jornal, 14/7/1964) 
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Fonte: Figuras e Coisas da Música Popular Brasileira / Jota Efegê. - Apresentação de Carlos Drummond de Andrade e Ary Vasconcelos. — 2. ed. — Rio de Janeiro - Funarte, 2007.

Chopin e Debussy na música de Vogeler

Henrique Vogeler
Estudiosos da música popular brasileira, Vasco Mariz e Elza Cameu apontaram as composições de Henrique Vogeler como influenciadas ou conduzidas por Chopin e Debussy. Ele, em seu livro A Canção Brasileira, escreveu: “... sua música (de Vogeler), sempre romântica, revela forte influência de Chopin...“. Elza, secundando-o, numa conferência que realizou em dezembro de 1962, disse: “... A influência de Debussy se fez sentir até na música popular de piano.” Esclarecendo a seguir: “... Não em seus processos técnicos, é claro, mas no aproveitamento da célula conclusiva de La plus que lente, da qual Henrique Vogeler tirou toda a inspiração para o seu Linda Flor.

Tem-se assim que o nosso saudoso musicista (patrício apesar do sobrenome germânico trazido de seu genitor), não foi verde-amarelo puro, absoluto. Sua bagagem artística onde se encontra obras algo elevadas ao lado de outras bem populares, enfeixa muitas que teriam sido inspiradas pelos citados mestres. Compositor com escola, e não de caixas de fósforos ou de tamborilamento, talvez não sentisse tais sugestões. Mesmo indo à regência de orquestras e à partitura de operetas e burletas, tais como A Canção Brasileira, de Miguel Santos e Luiz iglezias, de grande sucesso no Teatro Recreio, é possível que sua erudição não lhe tolhesse as concessões ao popularesco. Veio, no entanto, a marcá-las com tonalidades trazidas de seus estudos e predileções.

Recordando Vogeler

Bom compositor, ainda que seu nome não tenha logrado a popularidade de tantos outros de menor valia, Henrique Vogeler deixou um bom punhado de músicas. Constantes todas, ou quase todas, do excelente fichário de Almirante, vão desde o samba buliçoso, de melodia fácil, passando por valsas, foxes, até a canção de muito sentimento brasileiro. Mas, afora essas, visto serem partes integrantes das peças a que ser- viram, deve haver outro igual punhado de concepção mais alta, pomposa. Citemos, para imediato exemplo, as que compôs para a peça fantástica A Passagem do Mar Vermelho, de Fonseca Moreira, e foi apresentada no Teatro Carlos Gomes em maio de 1921.

Não sendo apenas um produtor de músicas destinadas ao sucesso das ruas, já que quase sempre esteve integrado em companhias teatrais regendo suas orquestras, fazendo a partitura de peças, dele pouco se fala. Até mesmo a sua Linda Flor, depois tornada Iá-iá, que vem tendo gravações sucessivas (a mais recente na voz de Isaurinha Garcia), provoca apenas a citação de sua grande criadora: Aracy Côrtes. Tudo muito compreensível em se tratando de um compositor vindo de uma época de sobriedade publicitária e perdido em meio de centenas (talvez milhares) de colegas. Estes, ainda que muito atentos a auto-divulgação, não lhe conseguem roubar o valor.

“Iá-iá” substitui “Linda Flor”

A música mais popularizada de Henrique Vogeler é, sem dúvida, a Linda Flor que teve seus primeiros versos escritos pelo literato Cândido Costa. Bonitos inegavelmente, de apurada correção, cantavam: “Linda flor, tu não sabes, talvez, quanto é puro o amor que me inspiras. Não crês, nem sobre mim teu olhar veio um dia pousar.” E seguiam sempre ternos, no preciosismo do tratamento da segunda pessoa do singular, suplicando o interesse da mulher que era linda e era flor. Apesar do apuro da letra, de seu exato encaixe no ritmo e na melodia suave, lenta, ficou quase inédita sem repercutir como merecia.

Algum tempo depois, a habilidade de um famoso revistógrafo, Luiz Peixoto, que se permitia acumular ser também irreverente caricaturista e poeta com muito senso do gosto da gente comum, concebia e rimava um novo motivo. A boa terra, essa Bahia que vem inspirando tantos sambas, daria uma de suas filhas para ser a personagem da canção. Nasceu, então, na mesma música de Vogeler — essa que Elza Cameu apontou como sugerida pelo tema de La plus que lente, de Debussy — o poemeto: “Ai, iô-iô!, eu nasci pra sofrê, fui oiá pra você, meus óinho fechô.” Sem perder o caráter ingênuo, simplório, prosseguia: “... E, quando os óio abri, quis gritá, quis fugi..“. Tinha-se, agora, versos espontâneos, gostosos, destinados a êxito certo.

Aracy garante o sucesso

Com sua nova forma, a canção de Henrique Vogeler foi incluída na revista Miss Brasil com a qual a renomada parceria Luiz Peixoto-Marques Porto subia mais uma vez ao letreiro luminoso do velho Recreio Dramático. Estreando no elenco, Aracy Côrtes, a mulata, como a tratava a imensidão de seus admiradores, foi escolhida para cantar o número. Chamada a interpretar música e letra bem próprias ao seu feitio, ela que nessa época (dezembro de 1928) dominava o nosso teatro popular, fez toda a platéia delirar. Quando o regente J. Cristobal, atendendo à insistência de bis deu as clássicas batidas com a batuta na estante pensou que a repetição bastaria para satisfazer ao numeroso público, mas enganou-se. Teve que fazer o mesmo gesto ainda por mais duas vezes.

Desenvolta, consagrada pelos aplausos entusiásticos, calorosos, Aracy não se fazia rogada e cantava: “Ai, iô-iô!, eu nasci pra sofrê, fui oiá pra você, meus Óinho fechô...“. E se a atriz se deixava empolgar pelo sucesso que alcançava, também Vogeler via projetar-se triunfante a sua música. Já não era mais a Linda Flor orgulhosa de quem se suplicava um olhar, era a Iá-iá. Renascia a música de Vogeler, graças aos versos de Luiz Peixoto e ao charme de quem os cantava, para popularizar o seu nome em toda a cidade. Consolidava esse triunfo a crítica, como o fez o saudoso Abadie Faria Rosa no Diário Carioca: “... A Sra. Aracy Côrtes que estreava como estrela do Recreio, emprestou a vários números aquele seu cunho de atriz bem nossa, cantando um lindo samba do maestro Vogeler com um sabor verdadeiramente acariciante.

Influência, sugestão, assimilação

Em música, como em qualquer outra arte, é sempre possível que as predileções, a retenção inconsciente de frases melódicas, de trechos, ou mesmo de acordes venham a se refletir na obra produzida. São, portanto, válidas e merecem acatamento as observações de Vasco Mariz e Elza Cameu quanto às influências de Chopin e Debussy nas composições de Henrique Vogeler. Um ou outro repontando no ritmo, na tessitura melódica e talvez no todo de algumas obras — tendo-se em conta que ambos provocaram escolas pianísticas e Vogeler foi exímio executante desse instrumento — não afetaram a brasilidade de sua música.

O reparo, a apreensão feita de vestígios, de influências chopiniana e debussiniana nas obras de Henrique Vogeler têm procedência porque se referem a um compositor enfronhado na escrita da pauta. Fosse ele um maestro caixa de fósforos, que os temos muitos e fazendo música verdadeiramente bonita por simples inspiração, falar-se-ia em assimilação inconsciente.

O certo, o inegável, é que a Linda Flor, ou a Iá-iá na concepção através da qual ganhou popularidade, tenha ou não a influência de Frederico (Chopin) ou de Cláudio (Debussy) resultou bem brasileira e ao nosso gosto.

(O Jornal, 5/7/1964)
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Fonte: Figuras e Coisas da Música Popular Brasileira / Jota Efegê. - Apresentação de Carlos Drummond de Andrade e Ary Vasconcelos. — 2. ed. — Rio de Janeiro - Funarte, 2007.

Elizeth, campeã de “charleston”

Elizeth Cardoso
A famosa Kananga do Japão, sociedade recreativa e carnavalesca até hoje é relembrada, como o foi por Lamartine Babo na sua marcha-rancho Seja lá o que Deus quiser. Ali se disputavam quase sempre renhidos campeonatos de valsas e de maxixe figurado, pois era familiar. Ao ritmo, às vezes lento, outras vivo, vertiginoso, buliçoso, conduzido por Masson, Manoel-da-Harmonia, Bulhões, mais alguns pianistas dos melhores da época, os pares competiam em disputa de medalhas, taças ou diplomas. E incentivando os participantes havia sempre numerosa assistência aplaudindo, torcendo por seus favoritos.

Mas, naquela domingueira dançante levada a efeito no salão da desaparecida Rua Senador Euzébio, onde no número 44 a Kananga tinha sede, promoveu-se um concurso infantil de charleston. A dança norte- americana com sua coreografia exótica, agitada, estava em grande voga nos clubes e na cidade. Foi fácil, portanto, reunir um punhado de meninos e meninas para o torneio idealizado. Ao final, depois de uma exibição que empolgou a comissão julgadora e sob palmas de entusiasmo, foi proclamada vencedora a garota Elizeth, sobrinha do Juca (conhecido como Juca da Kananga), um dos dirigentes da agremiação.

A Kananga e sua fama

Adotando como denominação o nome que os dicionários de botânica informam ser o de uma árvore aromática da Ásia e pertencer à família das zingiberáceas, a Kananga do Japão passou logo a dominar entre suas co-irmãs. Surgiu como grêmio carnavalesco e desde seu início, quando na Rua Barão de São Felix, 189, arregimentou os mais denodados foilões. Um deles, o João Machado Guedes (João da Baiana), que em 1911 era o diretor de harmonia. Já os seus bailes naquele tempo atraíam vultosa concorrência e quando nos dias do reinado de Momo fazia as costumeiras passeatas, ou ia à lapinha no Largo de São Domingos, o povo não lhe regateava aplausos.

Sua fama, porém, que a tornou conhecida e fez sua tradição chegar ainda vigorosa ao presente 1964, mesmo depois de desaparecida há mais de vinte anos, vem, não há dúvida, do tempo da Rua Senador Euzébio, 44. Naquele modesto sobrado de salão amplo, tendo a dirigir suas festividades o Juca, o Paiva e o Julio Simões; 101 que verdadeiramente teve seu nome propalado tanto na zona norte como na sul da cidade. Por isso, os bailes que realizava, animados por pianistas exímios, inclusive o popularíssimo Sinhô, estendiam-se até 5 e 6 horas da manhã com a casa apinhada e em franca animação até o clássico galope final.

No baile com o titio

Morava em frente à Kananga onde o seu tio Juca era o maioral, a menina Elizeth. Já que — conforme declarou em recente entrevista — sempre foi “muito saliente”, pedia, e muitas vezes ia aos bailes, principalmente aos das tardes de domingos. Seu encantamento pela música, seu desembaraço mostravam, desde então, que ela poderia vir a ser, como aconteceu, uma das grandes intérpretes de nosso cancioneiro. Dançava com outras crianças e seu garbo, a correção dos passos, provocava elogios: “essa menina vai longe!”.

Às vezes, para mostrar a precocidade da sobrinha, Juca no intervalo das danças dessas domingueiras fazia-a cantar e Elizeth, sem acanhamento, exibia-se num recital cujo agrado chegava aos pedidos de bis. Cresceu, assim, no ambiente de música dos bailes da Kananga do Japão. Quando Jacob (do bandolim) a conheceu numa festa em casa de sua tia Ivone, na Rua do Resende, e a levou para a Rádio Guanabara, na Rua Primeiro de Março, 123, ela já tinha o aprendizado do salão da Rua Senador Euzébio.

Campeã de “charleston”

Originário da cidade da qual trouxe o nome, o charleston chegou ao Brasil e se adaptou como dança ao ritmo de nossas marchinhas brejeiras e carnavalescas. Na época em que a Kananga do Japão realizou o aludido campeonato infantil, José Francisco de Freitas já havia lançado a Zizinha. Foi pois, com essa música executada ao piano por Tojeiro, que a gurizada entrou em competição procurando cada qual executar com maior requinte os passos e espalhafatosos movimentos coreográficos Ao mesmo tempo que agitavam braços e pernas as crianças cantavam em conjunto: “Zizinha, Zizinha!, ò vem comigo, vem, minha santinha”.

Como em toda disputa deve haver um júri, comissão julgadora ou algo que se assemelhe na que se travou para ver qual a menina ou menino melhor dançarino de charleston isso não foi esquecido. Um grupo de adultos acompanhava atento a competição e proclamou vencedora a garota Elizeth, embora dona Délia, comadre do Juca, pretendesse ver vitoriosa sua filha Zaíra. O triunfo era incontestável e houve mesmo quem apontasse Elizeth como imitadora perfeita de Josephine Baker em todos os seus trejeitos da dança inventada pelos coloreds da Carolina do Sul.

Constância da Kananga

A menina que foi campeã de charleston é hoje um nome glorificado em nossa música popular sendo ora qualificada como a Divina, ora como a Magnífica. Elizeth Cardoso (que um jornalista disse “está para o samba como Ella Fitzgerald para o jazz, no grau de divindade, de monstro sagrado”), no entanto jamais esqueceu a famosa Kananga do Japão. A tradicional sociedade recreativa e carnavalesca onde foi campeã de charleston e foi madrinha de São Jorge — que entronizado no alto da escada, era o padroeiro da agremiação — traz-lhe sempre ternas recordações.

Quando um dia Lamartine Babo compôs essa bonita marcha-rancho intitulada Seja lá o que Deus quiser, Elizeth quis, com bastante interesse, incluí-la em seu repertório. Assim como a Canção do Amor tem lugar destacado entre as várias dezenas de suas interpretações primorosas, a do saudoso Lalá, falando das pastoras da Kananga do Japão, transporta-a ao salão da Rua Senador Euzébio.

Revive então, emocionada, a tarde de domingo em que com seu vestidinho curto, graciosa cantava: “Zizinha, Zizinha!, ò vem comigo, vem, minha santinha...”. E vencia um campeonato de charleston.

(O Jornal, 17/5/1964)
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Fonte: Figuras e Coisas da Música Popular Brasileira / Jota Efegê. - Apresentação de Carlos Drummond de Andrade e Ary Vasconcelos. — 2. ed. — Rio de Janeiro - Funarte, 2007.