quarta-feira, março 21, 2012

Ismael era o samba na casa de Aníbal

Ismael Silva
Sempre que Ismael Silva chegava à casa de Aníbal Machado, na Rua Visconde de Pirajá n.° 428, as tertúlias domingueiras, constantes e bem concorridas, já estavam iniciadas e correndo em animados debates.

Mas à presença do compositor, então em franca voga com seus sambas cantados em toda a cidade, interrompia-se de pronto o sarau literário. Aníbal recebia-o com grande expansão (“salve o nosso Ismael!”) e provocava, conseqüentemente, igual acolhida de quantos se achavam na sala.

Às vezes Ismael trazia o violão debaixo do braço e era logo compelido amistosamente a libertar o pinho da capa que o enclausurava para iniciar o seu recital de sucessos.

Na maioria de suas visitas, porém, levava apenas a sua bossa e a elegância de uma roupa bem cuidada. Isto não impedia, entretanto, o êxito das audições, pois seus sambas interpretados com bastante expressão rítmica e melódica faziam delirar a audiência, provocavam os pedidos de repetição.

Um sambista "espoliado”

Usando-se o termo agora muito em moda, Ismael Silva, como quase todos os sambistas de sua época, foi um espoliado. Primeiro, a troco de reles cem mil réis (que nos idos de 1927 a 1930 já era micha) vendeu ao famoso Chico Viola algumas de suas composições. Depois, tendo como legítimo parceiro, Nilton Bastos, que com ele trabalhou letra e melodia de várias produções, foram os dois obrigados a dar co-autoria ao mesmo Chico para tê-las gravadas em discos.

Humilde, satisfazendo-o ouvir suas músicas cantadas na bonita voz de um grande cartaz, Ismael submetia-se. Acontecia, no entanto, que embora as transações de falsa autoria se processassem no cochicho, elas acabavam sendo quase de domínio público. Então quem ia às casas vendedoras pedia naturalmente: “eu quero o último disco do Ismael, aquele do “Me faz carinho”. Havia a espoliação, a co-autoria de araque, mas o nome de Ismael e de seu parceiro de verdade, o Nilton Bastos, flutuavam.

Prudentinho fã e cicerone

Entusiasta de nossa música popular, Prudente de Moraes, neto (que na crônica de turfe foi o Pedro Dantas, mas nos meios literários ainda hoje tem o tratamento amistoso de Prudentinho) é fã ardoroso de Ismael. Freguês da casa Ao Pingüim, na Rua do Ouvidor, aonde ia para ouvir e comprar as novidades em discos, principalmente as do compositor de sua preferência, foi ali que veio a conhecê-lo. O gerente Seu Oscar, sabendo da admiração de Prudente aproveitou um momento azado e fez a apresentação: “doutor Prudente, este é o Ismael Silva.”

Desde então ficou estabelecida a amizade entre o literato e o sambista. Aconteceu, porém, que Ismael durante muito tempo desapareceu das rodas que se formavam todas as tardes nas casas vendedoras de discos e Prudente só veio a reencontrá-lo poucos anos depois. A reaproximação deu-se no bar da Brahma, na Galeria Cruzeiro.

Aproveitando a oportunidade Ismael pediu a Prudente que, com as amizades importantes de seu meio intelectual, lhe conseguisse um lugar de Oficial de Justiça. Querendo satisfazer o que lhe era solicitado, Prudente levou Ismael ao Fórum, na Rua D. Manuel onde, na época, Aníbal Machado era Distribuidor de uma das Varas ali existentes.

Um sambista no sarau literário

Desejoso de atender ao velho amigo e, por igual, ver satisfeito o desejo do compositor a quem já conhecia bastante através de suas músicas (Olha, escuta, meu bem) Aníbal começou a diligenciar a respeito. Requintando a afabilidade acolhedora insistiu para que Ismael fosse à sua casa: “Todos os domingos, à noite, temos umas reuniõezinhas. Vá mesmo.” Os esforços de Aníbal foram infrutíferos, mas graças a Augusto Frederico Schmidt, pôde Prudente arranjar um emprego para Ismael onde este não se demorou muito.

Enquanto isto, animado pelo convite carinhoso que lhe foi feito naquela sala de uma repartição de fazer justiça, Ismael realizou sua primeira visita à casa n.° 487 da Rua Visconde de Pirajá. A festa com que o receberam, o agrado de seus sambas, cantados um após outro com palmas calorosas e exclamações de entusiasmo, obrigou-o a formular, pela madrugada, quando saiu, a promessa certa de voltar outras vezes. As tertúlias da casa de Aníbal Machado passaram a ter, desse modo, os atrativos que lhe eram costumeiros e a presença quase constante de Ismael Silva com seus sambas e seu violão.

Aníbal, entusiasta do populário

Se A Morte da Porta-Estandarte passou a ser um clássico da literatura sobre o Carnaval carioca, não se pense que Aníbal tivesse apenas essa manifestação (de escrita) pelo populário. As noitadas dominicais de sua casa, onde pontificava uma turma de intelectuais de várias tendências artísticas e ideológicas, tinham, invariavelmente, muito sabor simplório pela variedade dos participantes habituais. Fazia-se música de câmera, recebia-se um cantor erudito, homenageava-se um escritor famoso e, no meio de tudo, um sambista chegava e dominava a paisagem com suas produções espontâneas, de agrado pleno.

No seu linguajar transbordante de gíria (da qual ele tem um numeroso glossário) Ismael Silva, recordando saudoso os domingos da Rua Visconde de Pirajá, diz: “eu mandava meus sambas na casa do Dr. Aníbal!”. Depois, envaidecido do carinho com que o acolhiam, quer os residentes ou os visitantes, completa: “eu era um preto estimado por todos. Só vendo como a turma entrava bonito nos sambas que eu cantava. Eu dava a pala e todos faziam coro.”

Com isso, Ismael dá seu depoimento para ser juntado aos muitos que consagraram o terno, afável e muito humano Aníbal Machado.

(O Jornal, 15/3/1964) 
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Fonte: Figuras e Coisas da Música Popular Brasileira / Jota Efegê. - Apresentação de Carlos Drummond de Andrade e Ary Vasconcelos. — 2. ed. — Rio de Janeiro - Funarte, 2007.

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