domingo, março 18, 2012

O morro e o asfalto cantando juntos

Almoço na casa de Cartola; ao alto, o anfitrião e
Lamartine Babo; de pé, Sinhozinho, J. Efegê, Lan,
M. Camus e assistente, e Zica, mulher de Cartola.
Um domingo (mas não apenas algumas horas, todo um domingo) Lamartine Babo contaminou a Mangueira com sua alegria alvoroçante, comunicativa. Convidado para saborear uma muqueca, que seria preparada pela Zica, companheira do famoso Cartola (Angenor de Oliveira) em homenagem a Marcel Camus, o cineasta francês chegado ao Rio para aqui realizar o Orfeu do Carnaval, o Lalá acedeu prontamente.

Teria não só a grata oportunidade de visitando o decantado morro reencontrar uma de suas figuras mais expressivas e que tem o seu nome ligado à vitoriosa Estação Primeira (a aplaudida Escola de Samba dos suntuosos desfiles em nosso Carnaval).

Iria, ao mesmo tempo, conhecer um estrangeiro interessado em dar toda autenticidade ao seu filme que, embora vivendo uma lenda mitológica, ia ter como ambiente o morro com seus barracos, sua gente. E pairando sobre tudo isso, a música simples, espontânea que ali nasce.

E Lamartine lá chegou sem cerimônia, irradiando simpatia. Pouco depois, na roda que se formou antecedendo ao almoço e na qual havia tocadores de violão, de pandeiro, de tamborins, todos convocados pelo Cartola, Lamartine cantava suas composições empolgando um auditório numeroso e que ia aumentando continuamente. Não entoava apenas as suas marchinhas brejeiras, os seus sambas buliçosos.

Naquele seu jeito muito próprio, incorporando uma orquestra, ora imitava o pistão, reproduzia o trombone levando e trazendo a vara do instrumento, ora fazia a tuba grave no contra-canto que a melodia dava oportunidade. Mostrava assim os metais que sempre os queria predominantes nas introduções de suas músicas. Revezando com ele, num dueto em que se juntavam dois compositores de tendências diversas, Cartola entoava também os seus sambas.

O morro e o asfalto cantando juntos e embevecendo Camus que, pela primeira vez, via e ouvia o ritmo brasileiro em várias de suas nuances e numa exibição pura, emoldurada por um cenário exato. Depois, à mesa, fazendo piadas, elogiando a comida, Lamartine ainda manteve todos em constante alegria, envolvendo-os no seu bom-humor.

Findo o almoço, formou-se novamente a roda e então, mais animada, a mostra das canções do morro e do asfalto prosseguiu empolgante na interpretação de duas figuras exponenciais: Cartola e Lamartine Babo.

Desse domingo festivo, de gala para a música popular brasileira, ficou uma recordação muito grata entre a gente da Mangueira desejosa de uma nova visita do querido compositor da cidade que com ela comungou casando sua música com a do sambista dali, do morro. Esse reencontro, a prometida volta de Lamartine à Mangueira não deixará de ser cumprida por sua morte.

Ele voltará não somente num domingo, mas sempre que algumas de suas composições ali se fizerem ouvir tornando-o presente numa evocação saudosa e amiga.

(O Jornal, 23/6/1963)
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Fonte: Figuras e Coisas da Música Popular Brasileira / Jota Efegê. - Apresentação de Carlos Drummond de Andrade e Ary Vasconcelos. — 2. ed. — Rio de Janeiro - Funarte, 2007.

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