quinta-feira, março 15, 2012

O público vaiava e Carmen chorava

Carmen Miranda em 1930
Não houve apenas uma vaia esparsa, sem densidade, partida de pequeno grupo. Foi, como registrou acreditado matutino: “pateada geral e partia tanto dos balcões como dos camarotes e da platéia, onde cavalheiros em altos brados exigiam que se respeitasse a família brasileira”. Coisa mesmo de causar pânico, de se temer um quebra-quebra ou a clássica chuva de ovos e tomates sobre o palco visando aos atores.

E Carmen Miranda, que naquela noite fazia sua estréia no teatro integrando um numeroso elenco juntamente com os mais afamados intérpretes de revistas, apavorada, trêmula, chorava copiosamente. Escondida nos bastidores, já que ali se postara por ordem do contra-regra para a entrada no quadro seguinte, não lhe acorreu a idéia de refugiar-se no seu camarim. Amedrontada, continuava no mesmo lugar, em pranto, como estátua.

Assim se conta a história

Anunciada para 11 de setembro (1930), só na noite seguinte verificou-se, às sete e três quartos, horário de praxe das sessões, a primeira representação da revista Vai dar o que falar, no Teatro João Caetano. Além de ter a autoria de Marques Pôrto e Luiz Peixoto, ases do gênero, seria “defendida” por um punhado de estrelas: Palitos, Eva Stachino, Olga Navarro, Sara Nobre, Sylvio Vieira, Tina de Jarque, Zaíra Cavalcante e outras. Como atração, pois era na época a “Rainha do Disco”, a empresa Antonio Neves & Cia. Ltda. incluíra também no conjunto Carmen Miranda.

Precedida de farta publicidade, destacando-se nos anúncios os nomes dos componentes do verdadeiro scratch de atores do teatro popular, a première (no francesismo usual) despertou grande interesse. Com ingressos que custavam, as frisas 35 mil réis e as galerias (torrinhas) 3 mil, a lotação fora vendida totalmente. Todos queriam assistir ao espetáculo que, afora tantos atrativos, teria “efeitos de luz como só se vê nas revistas de Paris, Nova Iorque e Londres”. A razão, porém, da rápida venda das localidades não se tinha dúvida que era, principalmente, o aparecimento da criadora da marchinha Tá i em um dos palcos da Praça Tiradentes.

Uma estréia “au grand complet”

Sempre no correntio galicismo então dominante nas colunas sociais da imprensa, a estréia da parceria Pôrto-Peixoto deu-se, de fato, au grand Complet. Quando o maestro Augusto Vasseur, regente da orquestra e autor, juntamente com Ary Barroso, da partitura, bateu com a vareta na estante convocando os professores à execução da ouverture toda a platéia estava em expectativa otimista. Vieram logo, ao final, palmas calorosas augurando um bom início para o espetáculo.

Os primeiros quadros, sketches cômicos, números cantados e de fantasia, lograram, igualmente, o mesmo êxito. Aplausos demorados, alguns pedidos de bis comandados pela galeria lá do alto do teatro animavam o curso da representação sem fazer prever o incidente que depois veio a se verificar. Carmen Miranda surgiu em cena para seu primeiro contato com o vultoso público e teve acolhida consagradora. Desenvolta, com seu hit que transportara ao vivo dos estúdios das gravadoras de discos para o palco, provocou ruidosa manifestação de agrado intercalada dos bravo! de entusiasmo.

A pateada faz parar o espetáculo

Depois de um primeiro ato feliz, concluído com a chamada dos autores, atores, regente e até mesmo do pessoal da maquinaria, não se poderia prever o incidente que iria ocorrer pouco depois. Carmen Miranda voltaria a aparecer na segunda parte da revista e deveria ter palmas tão expansivas quanto as que lhe já haviam sido dadas.

Consoante o roteiro dos quadros entraria depois de O Mangue, cena na qual os autores reproduziam o bas fond carioca com o meretrício nele existente. Era uma tentativa ousada de levar o realismo ao teatro sem artifícios ou moderações.

Ao abrir-se a cortina, o simples cenário causou revolta, provocando vaia, apupo, que se generalizou em pateada geral fazendo parar a representação. De pé, indignados, alguns espectadores gritavam enquanto outros batendo com os pés fortemente no assoalho repudiavam o quadro que pretendiam lhes exibir. Já postada nos bastidores, aguardando sua entrada, Carmen Miranda, na emoção de uma estreante, embora confortada pelo sucesso da aparição no ato anterior, tomou-se de pavor. Os silvos agudos, a gritaria, o barulho ensurdecedor deixando clara a fúria reinante na platéia, encheu-a de pânico, de medo. Chorando, sentia-se presa ao chão, tremendo muito, temendo que toda aquela gente realizasse um massacre feroz, impiedoso.

Apesar de tudo, uma estréia brilhante

Encorajando-se, Pablo Palos, o Palitos, apelido pelo qual o conhecido ator argentino se popularizou em sua terra e no Brasil, apareceu no palco e pediu calma. Anunciou que o quadro não seria exibido e nos demais nada haveria capaz de chocar a assistência. Resultou feliz a intervenção, pois serenados os ânimos, refazendo-se do temor que a levara ao pranto, com os olhos ainda vermelhos, resistindo à maquilagem, Carmen Miranda pôde voltar para seu segundo número.

Novamente, conseguindo com sua graciosidade fazer esquecer o incidente, Carmen Miranda provocava os aplausos de toda a platéia, marcando auspiciosamente, a despeito de tudo, sua estréia no teatro. No dia seguinte, sem deixar de aludir à lamentável ocorrência, a crítica assinalava o êxito daquela que viria a ser “A Pequena Notável”. Fazia-o com francos encômios como bem atesta o registro de O Paiz aqui reproduzido: “...Miranda que triunfou na gravação de discos será em breve um dos mais brilhantes esteios de nosso teatro ligeiro.”

(O Jornal, 5/5/1963)
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Fonte: Figuras e Coisas da Música Popular Brasileira / Jota Efegê. - Apresentação de Carlos Drummond de Andrade e Ary Vasconcelos. — 2. ed. — Rio de Janeiro - Funarte, 2007.

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