quarta-feira, março 14, 2012

O Libório das três vizinhas

Luís Barbosa
Não. O Libório, aquele que tinha (ou tem) como vizinhas Manon, Margô e Fru-Fru não é o mesmo Libório (“Dr.”) que foi, no dizer de um conceituado matutino: “o primus inter pares dos carnavalescos suburbanos”. Esse, o momesco, foi paredro do desaparecido Pingas, grêmio que no Engenho de Dentro disputava a primazia na localidade durante os festejos dedicados ao soberano da galhofa. O outro foi um tipo imaginado pelos seus criadores, os famosos compositores João de Barro (Braguinha) e Alberto Ribeiro, aos quais se deve um punhado de bonitas e bastante difundidas canções até hoje relembradas.

Houve, no entanto, em 1935 e 1936, quando Luiz Barbosa lançou o sambinha satírico que relatava a estória do feliz personagem de vizinhança tão desejada por muitos, quem supusesse tratar-se do folião suburbano. Os que conheceram o “Dr. Libório” dos seus agitados tempos de carnavalesco incansável, sempre preocupado em sobrepujar os temidos rivais arregimentados no Pepinos, agremiação também existente na referida localidade, pensaram ser ele o focalizado. Nada disso. O Libório que “mandava” nas vizinhas, irradiante de felicidade, ignorava inteiramente o seu homônimo de intensa atuação foliã nos dias de 1913 a 1916.

Assim nasceu Libório

Convocados a depor “como, quando e onde” nasceu o Libório de vizinhas tão sedutoras apesar de sua diversidade (uma lourinha, outra queimadinha), Alberto e Braguinha afirmaram: “Foi ao acaso, uma brincadeira, imaginação.” Houve, porém, alguém (o “alguém” que se ligou ao ricaço coronel Limoeiro) sugerindo o tipo, a figura. “Um casal, ele aparentando 60 anos, ela 50, ambos sempre bem trajados, que passavam todas as tardes pela Cinelândia, deu-nos a idéia do sambinha”, ajuntaram, depois, os autores esclarecendo. Libório, nome fácil, sonante, surgiu espontaneamente e fixaram-no em definitivo para a canção.

Dias depois, Luiz Barbosa, cançonetista que juntava à sua interpretação o saber tamborilar com mestria o chapéu de palha, tinha em mãos a letra do sambinha com o qual deveria aparecer num filme produzido por Wallace Downey. Fita despretensiosa, de uma série realizada por esse cineasta norte-americano em nosso país com o fito de aproveitar os melhores intérpretes de música popular, ela logrou plenamente o objetivo visado. O saudoso ritmista do “palheta” tornou-se a principal atração cantando bem ao seu jeito: “Seu Libório tem três vizinhas:/ Manon, Margô e Fru-Fru,/ Saem todas as tardinhas/ Carregando o seu lulu...“.

O Libório das vizinhas e o outro

Descritiva, contando um pouco da vida amorosa de um homem certamente invejado pela graciosa vizinhança de que desfrutava, a letra posta em música fácil e graciosa prosseguia: “Ninguém sabe o que elas fazem,/ Porém todo mundo diz/ Que Seu Libório é quem manda./ Como o Libório é feliz!”. E, inegavelmente, o personagem assim apresentado deveria, como já proclamava a gíria, “estar com tudo e muito prosa”. Orgulho, contudo, bem diverso daquele que desfrutava seu homônimo, o carnavalesco do Engenho de Dentro, sem Manon, Margô e Fru-Fru nas proximidades, desejoso apenas de ver o Pingas derrotar o Pepinos nos desfiles alegóricos.

Numa época em que o Carnaval suburbano, mesmo no longínquo Realengo ou Santa Cruz, se realizava com grande animação tendo um punhado de sociedades que buscava cada qual a primazia, o “Dr. Libório” era inteiramente dedicado a Momo. No Engenho de Dentro, não só na Rua Dr. Manoel Victorino onde tinha sede o Pingas Carnavalescos, ou na Dr. Niemeyer em que estava instalado o Pepinos Carnavalescos, todos reconheciam sua fibra foilônica. A afanosa atividade clubística não lhe deixava tempo para atentar nas vizinhas que passeavam com ou sem “lulus”.

A homonímia e a suposição


Quando entre 1936 e 1938, já bem divulgado pelo cinema e rádio, através da interpretação de Luiz Barbosa, assim como pelo disco na voz do saudoso Vassourinhas, o retrato musical do Libório se tornou conhecidíssimo de toda a cidade, o nome do personagem também se popularizou. No Engenho de Dentro já não havia aquelas costumeiras reuniões, que em janeiro e fevereiro tinham como ponto de preferência a Confeitaria Paris para onde convergiam os carnavalescos do local. O Carnaval suburbano em franca decadência tinha ali apenas a velha guarda saudosa dos tempos movimentados do primeiro e segundo decênio deste século.

Foi, pois, um veterano, um daqueles que conheceram o “Dr. Libório” em seus tempos de dedicado ao Pingas quem levantou a suposição de ter sido ele o inspirador da parceria João de Barro-Alberto Ribeiro. Boêmio, tendo sempre galanteios para dirigir às moças que freqüentavam os bailes de sua agremiação, o carnavalesco poderia ter sugerido, com alguma invencionice dos compositores, a existência das três vizinhas e de seu cãozinho. Nos trens, nos bondes, nos encontros de rua, os antigos moradores que encontraram, muitas vezes, o “Dr. Libório” sobraçando o “livro de ouro” à cata de numerário para o Carnaval viram-no glosado na canção.

O personagem real e o imaginado

Braguinha e Alberto Ribeiro, a dupla de compositores que se formou por iniciativa de Mangionne, pois foi esse conhecido editor de músicas que apresentou um ao outro, jamais ouviram falar do “Dr. Libório” do Engenho de Dentro. O casal que lhes inspirou o samba satírico, malicioso, em sua costumeira passagem pelo bairro onde Francisco Serrador instalou a Cinelândia, também nunca lhe disse o nome pelo qual ele e ela atendiam. Libório aflorou na imaginação dos autores no momento em que Downey lhes pediu uma composição para o Luiz Barbosa cantar em “Alô, Alô, Brasil?” ou “Alô, Alô, Carnaval!” (eles não recordam qual).

Quando, agora, se lhes falou do “Dr. Libório”, classificado pelo famoso cronista Vagalume nas colunas do Jornal do Brasil como primus inter pares dos carnavalescos suburbanos, ficaram surpreendidos. Um deles, o João de Barro, teve então a frase oportuníssima ao conhecer a confusão que se teria estabelecido entre o Libório (apelido dado ao folião Coelho, do Engenho de Dentro) e o outro criado por ele e Alberto Ribeiro: “o personagem entrou na estória”. Não evocou Pirandello, mas quis, evidentemente, recordar aquelas seis pessoas que procuravam um autor. 

(O Jornal, 24/3/1963)
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Fonte: Figuras e Coisas da Música Popular Brasileira / Jota Efegê. - Apresentação de Carlos Drummond de Andrade e Ary Vasconcelos. — 2. ed. — Rio de Janeiro - Funarte, 2007.

Zizinha, Lili, Dondoca e Dorinha

José Francisco de Freitas
Zizinha, a “santinha” de quem todos pretendiam “tirar uma casquinha”, foi personagem imaginária tendo a favorecê-la o diminutivo de seu apelido proporcionando rima rica e fácil. Lili, a que foi surpreendida quando era bolinada, igualmente fictícia, permitia também no tratamento íntimo de seu nome um versejar simples e espontâneo. E ainda com Dorinha, a que fazia o amante chorar ante sua indiferença ou não correspondência (igualmente criada pelo compositor) aconteceu o mesmo observado em suas antecessoras.

Já com a Dondoca, a que devia apressar o passo ameaçada por um beliscão na “pernoca”, a coisa foi diferente. Essa existia, e embora popularizada no Carnaval de 1927 sob a suposição de tratar-se de alguma melindrosa (hoje dir-se-ia brotinho), era uma cadelinha a quem José Francisco de Freitas tinha grande estima. Emprestou, pois, o nome pelo qual atendia para uma nova marchinha alegre, brejeira. Música que toda a gente cantou nos três dias do reinado de Momo enriquecendo a bagagem musical de seu dono e ensejando-o ser mais uma vez vitorioso na competição musical carnavalesca.

Passos, o prefeito, ajuda Freitas

Mostrando seus pendores musicais logo nos primeiros anos de idade, aos dez, precisamente, José Francisco de Freitas compunha a primeira música à qual deu o título Pereira Passos. Prestava desse modo sua homenagem ao operoso prefeito que modernizava o Rio rasgando novas ruas, fazendo surgir amplas avenidas. Teve então o pronto reconhecimento do governador da cidade que lhe proporcionou matrícula gratuita no Instituto Profissional Marcolino como gratidão ao garoto pobre e em cuja produção artística deixava nítida sua vocação musical.

No referido estabelecimento de ensino, a par do aprendizado da tipografia que lhe permitiu depois ingressar na imprensa Nacional e do estudo das matérias ali lecionadas, aprimorou-se no conhecimento da música. Seu professor, o consagrado maestro Francisco Braga, transmitiu-lhe um amplo cabedal de noções graças ás quais se tornou não só apreciável compositor, mas, ao mesmo tempo, exímio executante ao piano. Podia, por isso, divulgar em toda a expressão do que lançava na pauta as muitas composições de seu apreciado repertório.

Um pianista na Rua da Carioca

Dominando com muita técnica o teclado alvinegro, Freitinhas, como o tratavam nas rodas dos musicistas de sua época, ligou-se à Casa Carlos Wehrs, editora de todas (ou quase todas) suas composições. Passou a ser o pianista oficial do antiqüíssimo estabelecimento da Rua da Carioca, Ali, antes e depois de atender ao seu horário na Imprensa Nacional, era sempre encontrado “passando” partituras para os fregueses que as queriam conhecer antes de comprá-las, ou executando suas próprias músicas que já eram de franco sucesso.

Na temporada carnavalesca, principalmente, era mais assíduo. Quando ainda não havia o rádio e a divulgação das canções carnavalescas se fazia através das revistas teatrais ou executada pelos seus autores nas casas vendedoras de músicas, Freitas pontificava todas as tardes na Carlos Wehrs. Sentado ao piano colocado bem próximo à porta, dedilhava com mestria o instrumento e suas marchinhas buliçosas, saltitantes, faziam parar os passantes que formavam uma audiência numerosa e entusiasta. Essa mesma gente, já impregnada do vírus momesco, formava então um coral improvisado que entoava alto, sem cerimônia, a letra da composição que estava ouvindo.

Zizinha, Lili, Dondoca e Dorinha consagram o “marchista”

Quando José Francisco de Freitas, no Carnaval de 1925, lançou sua marcha Zizinha viu-a dominante com toda a cidade cantando: “Zizinha!,/ Zizinha!,/ Ó vem comigo, vem, minha santinha,/ Também quero tirar minha casquinha.” Estava iniciado o desfile de suas personagens fictícias. No ano seguinte era a Lili quem tinha sua vez de se popularizar, pois, por toda a parte, durante o tríduo foliônico todos afirmavam: “Eu vi!,/ Eu vi!,/ Você bolinar Lili, Lili/ Quando beliscava assim,/ Ela nervosa, enfim,/ Ficou ao ver-me ali.”

O êxito das duas marchas e, conseqüentemente, das “moças” que as intitulavam, levou Freitas a pensar numa terceira. E sua cachorrinha cujo nome apontava um punhado de rimas ficou sendo, por suposição do povo, a nova protagonista. Surgiu, pois, em 1927 a advertência: “Dondoca!,/ Dondoca!,/ Anda depressa! Que eu belisco essa pernoca.

Acompanhou-as, mais tarde (1929), registrando o mesmo sucesso de suas antecessoras Dorinha, cujos versos suplicavam: “Dorinha, meu amor.! Por que me fazes chorar?/ Eu sou um pecador/ Que vive só pra te amar.” Tinha-se, portanto, através de quatro mulheres não identificadas a consagração do “marchista” Freitinhas.

Perenidade do mito e da música

Tornando perene o mito de suas personagens, posto que até hoje, vencidos mais de trinta anos, Zizinha, Lili, Dondoca e Dorinha, ainda são evocadas e tornaram-se popularíssimas, José Francisco de Freitas viu consagradas também suas músicas. As regravações que delas vêm sendo feitas (principalmente as devidas a Altamiro Carrilho e sua bandinha) trouxeram-nas até nossos dias para seus contemporâneos e para a nova geração.

Formaram o documentário do farto e magnífico repertório de um autêntico compositor popular. Produções que, como acertadamente as definiu o cronista carnavalesco K. Noa (Antônio Veloso) em comentário no Diário de Notícias, nos dias de 1931: “. . . são harmoniosas e brejeiras, de música leve, saltitante e letra cuidadosamente escrita, sem pornografia ou ofensas diretas ou indiretas à educação do povo.”

Hoje, quando imperam em nossa música popular falsos valores à força de divulgação comercializada ou da “caetutagem” (divulgadores profissionais) desabrida, Freitinhas bem merece que se recorde seu nome e suas marchinhas. Todas elas com muito sabor de graciosidade e leva- das à preferência do povo em suas primeiras execuções feitas pelo autor no piano da tradicional Casa Carlos Wehrs ou nas noitadas dançantes do famoso rancho Ameno Rosedá.

Bailes que eram, desde 1924, sempre animados pela “excelente jazz-band do Maestro Freitas” como frisavam nos convites e nas notícias enviadas aos jornais.

(O Jornal, 17/3/1963)
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Fonte: Figuras e Coisas da Música Popular Brasileira / Jota Efegê. - Apresentação de Carlos Drummond de Andrade e Ary Vasconcelos. — 2. ed. — Rio de Janeiro - Funarte, 2007.