terça-feira, março 20, 2012

“Dá nela!” gera uma estrela

Zaíra Cavalcanti
O maestro J. Cristobal ergueu a batuta e a orquestra do Teatro Recreio onde naquela noite de 24 de janeiro de 1930, era estreada mais uma revista da parceria Marques Porto-Luiz Peixoto, atacou a marchinha. E Zaíra Cavalcante num jeitinho menineiro começou a cantar: “Essa mulher há muito tempo me provoca”. As coristas movimentando-se ao compasso da música fácil ajuntaram o refrão: “Dá nela! Dá nela!”. Prosseguiu então a atriz complementando a cópia brejeira: “É perigosa, fala mais que pata choca”. Novamente o coral, bem vivo, sentindo o agracio do número, repetiu: “Dá nela! Dá nela!”.

Ao entrar na segunda parte da canção carnavalesca, já não era apenas Zaíra e as girls (ou jambetes como agora são denominadas as coristas) que entoavam os versos de Ary Barroso. Todo o público, numeroso, como sempre acontecia nas primeiras da antiga casa de espetáculos, empolgado, unia a platéia ao palco num volumoso coral cantando todos: “Fala língua de trapo / pois da tua boca / não escapo!”.

Depois, ao findar, palmas e pedidos de bis!, bis!, bis! exigiram a repetição por três vezes da marchinha, mostrando quanto fora acertada a sua classificação, dias antes, em primeiro lugar num concurso público. Era o sucesso da música e de sua intérprete.

Da indecisão à vitória

Quando a Casa Edson, produtora dos discos Odeon, anunciou a realização de um concurso para a escolha dos sambas e marchas que gravaria em seu suplemento de Carnaval, Ary Barroso não mostrou interesse pelo mesmo. Mas foi o próprio diretor de gravações da promotora do certame, Eduardo Souto que, segundo declaração do compositor vitorioso, animou-o a participar. Mesmo assim, só no dia do encerramento do prazo de entrega das composições (31 de dezembro de 1929) e na hora final (cinco da tarde) decidindo-se, levou a partitura de sua marchinha Dá nela!. Iria, apenas, dar sua contribuição e atender à insistência do maestro amigo pois, conforme veio a dizer mais tarde, não era “um compositor carnavalesco”.

Juntada às muitas músicas inscritas na competição, a de Ary Barroso foi selecionada no cotejo prévio feito por Oswaldo Santiago, Assis Pacheco, Aracy Côrtes e outros, sendo incluída entre as cinco finalistas.

O julgamento público deu-se dias após, sábado, 18 de janeiro de 1930, no Teatro Lírico e ali, interpretada por Francisco Alves, com acompanhamento da Orquestra Pan-Americana, de Simon Boutman, logrou o 1.° lugar. O público, que à entrada recebia uma cédula para declarar qual a música de seu maior agrado, elegeu a marchinha Dá nela!, cujo autor, oculto sob o pseudônimo de Aba foi, a seguir, identificado: Ary Barroso.

O sucesso impõe o título

A empresa A. Neves & Cia., explorando no tradicional Recreio da antiga Rua do Espírito Santo (hoje Rua Pedro I) o gênero das revistas populares, não dormiu no ponto. Assessorada por Marques Porto e Luiz Peixoto, autores de quase todas as peças ali apresentadas, e invariavelmente com excelente freqüência e conseqüente bilheteria, viu a marchinha como ótimo chamariz para o próximo cartaz. Estava anunciada a estréia de A melhor de três, mas, dois dias antes da première (24 de janeiro), aparecia nos anúncios dos jornais e na fachada cio teatro o novo título: Dá nela!.

Objetivando um ruidoso êxito, o empresário, que já tinha em sua companhia Aracy Côrtes, Mesquitinha, J. Figueiredo e Olga Navarro, nomes prestigiosos, seguidos dos de Elza Gomes e Zaíra Cavalcante, resolveu reforçar o elenco. Contratou, então, as atrizes espanholas Isabelita Ruiz e Tina de Jarque, trazidas ao Brasil pela Companhia Velasco e que aqui se encontravam sem compromisso profissional. Na distribuição dos papéis e dos números musicais, embora achando a marchinha de Ary Barroso atraente para título da revista, deram a sua interpretação a uma das segundas componentes do conjunto.

Aconteceu, no entanto, que a graciosidade de Zaíra, a espontaneidade da letra e a melodia facílima resultaram em pôr em evidência uma figura não muito projetada pela empresa.

“Dá nela!” gera uma estrela

Nascida em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, mas tendo feito sua estréia em Santos, como integrante da Companhia Arruda, a gaúcha Zaíra Cavalcante só veio a ingressar no Recreio em dezembro de 1929. A primeira revista de que participou foi Pátria Amada, dos parceiros Porto e Peixoto quando Mano Nunes, crítico do Jornal do Brasil, fez-lhe a seguinte referência: “... sabe cantar expressivamente sublinhando tudo com meneios quentes”. Antes fora corista da Tró-ló-Ió, em temporadas nos Teatros Glória e Carlos Gomes e exibira-se no cabaré Alcazar, na Rua do Passeio. Não era, pois, uma figura bem conhecida do público.

Ao lhe ser confiado o número que dava título à peça, certamente não reivindicado pela mulata Aracy Côrtes, nome principal do elenco, esperavam, deduz-se, um desempenho satisfatório mas não o sucesso obtido. Aconteceu, no entanto, que confirmando a acertada escolha feita pelo público na competição promovida pela Casa Edson, a marchinha Dá nela!, de Ary Barroso, fez nascer uma estrela no tradicional teatro da Rua do Espírito Santo.

Aos aplausos demorados e toda a platéia fazendo-a trizar a musiquinha que também cantava entusiasmada tornando o autor exultante, a crítica dava sua homologação. Um de seus principais integrantes Lafayette Silva, do Correio da Manhã apreciando o espetáculo, assim saudava a atriz: “Zaíra Cavalcante é a mais séria ameaça do teatro popular.

Arrancada para a glória

Compositor dos mais fecundos, deixando, conforme levantamento de Claribalte Passos “um total de 400 músicas”, Ary Barroso viu (pode-se dizer sem exagero) toda sua carreira pontilhada por sucessivos êxitos. Possivelmente o triunfo de sua marchinha despretensiosa foi, para o imenso número de admiradores que acompanhava e cortejava todas suas produções, superado pelo que até hoje obtém a Aquarela do Brasil. Ele porém, tinha razões para sobrepor a todas suas obras a singela canção que “um lápis, uns acordes ao piano, um rancho passando pela rua” bastaram para fazê-la brotar nas cinco linhas da pauta musical.

Com Dá nela! que, em janeiro de 1932, confessou reconhecer ser “a pior de todas as minhas músicas conhecidas”, o humilde aluno de sua Tia Rosinha projetava-se para a glória. Também com os versos simples, infantis, aliados à melodia ingênua, singela de sua marchinha fazia aparecer uma nova estrela num velho palco, antes pisado por muitas outras.

E afora tudo isso, (é o próprio Ary Barroso quem confidenciou em entrevista ao matutino Crítica) o prêmio de cinco contos de réis, ganho no concurso do Teatro Lírico, me permitira “casar com a mulher que amo.”

(O Jornal, 1.°/3/1964) 
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Fonte: Figuras e Coisas da Música Popular Brasileira / Jota Efegê. - Apresentação de Carlos Drummond de Andrade e Ary Vasconcelos. — 2. ed. — Rio de Janeiro - Funarte, 2007.