quarta-feira, janeiro 08, 2014

Breves impressões sobre Zaíra Cavalcanti

"Fúria no céu do trópico e no chão do pampa - Breves impressões sobre Zaira Cavalcanti, a formosa estrela dos palcos brasileiros".

"O imperativo geográfico fez desta criatura indomável um complexo sem decifração. Raras vezes, a terra tão flagrantemente vincou um temperamento de mulher, modelando-o à sua feição.

O chão gaúcho, com secretos poderes da sua opulência, nutriu em excesso as influências da natureza sobre a personalidade flor de carne e emoção. Zaíra Cavalcanti parece possuir na alegoria pagã do seu encanto de mulher a fervência do sol do pampa diluída na alegre alvorada da coxilha. Os seus olhos têm lonjuras da planície sulina, a sua voz tem frêmitos do vendaval que faz dobrar-se em joelhos o verde corpo da montanha.

Não será fácil a ninguém libertar-se do bruxedo de tão formosa presença. Diante de mim, uma vez, a sua pessoa desmanchou-se em tintas esmaecidas e repontou, refulgente como um pedaço de sol, a paisagem martirizada dos campos ao meio-dia.

Fitando longamente esse rosto moreno, queimado por muitos sóis, que tantas madrugadas beijaram em países distantes, a imagem que se cristaliza ao nosso olhar não ganha a forma humana de repente; antes se recorta em variados cristais e neles se desenham as cenas apocalípticas do mundo em formação, quando, num apoteótico festim de matérias criadoras, proveio do caos a harmonia dos seres vivo e dos inanimados.

Zaíra Cavalcanti transfigura em infernais fantasias o quebranto da sua presença. Tem-se a ilusão de que as coisas ao redor adquirem as forças da natureza apoplética por germinar. Tanto essa mulher tem ímpetos de indisciplinar os sentidos, tanto ela tem de diabólico e provocador, tanto o seu nervoso sorriso possui dos gritos do amor.

Um dia, seu destino buscou-a no fogo do pampa para queimar com as chamas da beleza as multidões do teatro. O teatro — esse fauno sem delíquios — não sorveu, como é de hábito, o esplendor daquela febre em ascensão. Zaira Cavalcanti nunca esgrimiu a luz da sua mocidade de encontro ao focos entontecedores da gambiarra. A sua vitória no teatro não foi uma luta nem foi mesmo uma arrancada de concessões. Em seu favor, quebrou a vulgaridade, e quem se lembra há de concordar que o Brasil nessa altura pensou a sério na arte cênica quando viu num palco, iluminando coxias, bastidores e gambiarras, o sol moreno do corpo de Zaíra Cavalcanti. Porque tudo se curva ainda ante a música da beleza e o verbo do talento.

Resumindo em sua pele iodada as cores vibratórias do trópico, e trazendo no sangue e na índole a energia sensual da alma gaúcha, essa artista que os homens amam com aplausos é a humanização singular e tentadora dos venenos que curam, dos ácidos mortíferos que alimentam, da maçã diabólica que criou o frenesi.

Que poderá Zaira Cavalcanti dizer da sua vida sentimental ou da sua carreira no teatro, se em nós outros é que devemos buscar o romance do seu coração e os voos da sua arte. A si mesma ela nunca pertenceu. Como as rosas que dão perfume, e os luares, que ofertam poesia, essa admirável criatura entregou-se naturalmente, como uma dádiva, à vertigem da vida e à embriaguez da cena.

Artistas como Zaíra Cavalcanti não falam ao público sobre si próprias porque iriam desvendar os segredos que nós, povoadores de plateias, mais estimamos, narrando fatos e acontecimentos que foram e são instantes de “féerie” inesquecível para a nossa sensibilidade. Referindo-se aos seus sucessos ou descrevendo a sua atuação no palco da existência o que ela faria era desfolhar o mistério de quantos a amaram, em silêncio, com desespero. E ninguém perdoa a quem levanta o véu do seu coração!"

De DANILO BASTOS - Especial para CARIOCA


Fonte: CARIOCA - Dezembro de 1941.