sábado, julho 05, 2014

O novo Hekel Tavares

"Hekel chegou ao Rio, vindo do Norte, na mais
extrema falta de recursos. Aqui o vemos, numa
foto raríssima, feita nos dias duros: costurando
seu único par de meias ..." (Carioca, 7/8/1937)
"Ser tratado pelo apenas pelo primeiro nome não é irreverência, é consagração. J. B. da Silva foi grande, e ainda o é na memória de todos, porque viu seu nome gloriosamente simplificado pelo povo que só o tratava carinhosamente por "Sinhô".

Hekel (1) Tavares, embora possuindo um nome exótico, incompatível com a sua personalidade eminentemente bugra, conseguiu esse máximo de cotação que é o não ter a lhe preceder o nome um sisudo "senhor", um prosaico "seu", um pedante "Dr." ou um conspícuo "maestro".

E a nossa gente foi tão longe com ele, nesse particular, que esqueceu-lhe até o sobrenome Tavares, numa simbólica manifestação de camaradagem; títulos e sobrenome, na opinião popular brasileira, são coisas convencionais; por isso a gente toda, numa solução genial, trata o notável compositor simplesmente por Hekel. De que, é o "Banzo"? Ora, é do Hekel ... Era só o que faltava que o "Banzo" fosse do senhor maestro Hekel Tavares ...

Um senhor maestro só produz ruidosos “operões” que o povo esquece. Afinal, quanto nome esquecido, de gente que no Brasil, como no estrangeiro, produziu massudas e arquivadas partituras cheias de "dós" incrivelmente agudíssimos e "fás" absurdamente graves? São nomes que a gente só encontra nos dicionários, devidamente acompanhados de títulos pomposos. Mas ninguém sabe se Mozart era nobre ou se Bach era doutor. Já ouviram falar em maestro Mozart ou maestro Bach? Nunca. Apenas e colossalmente em Mozart e Bach. Esta simplificação é tudo, esse desrespeito é a adoração.

Pois é do Hekel que nos ocuparemos hoje. Do Hekel herói. Desse Hekel que teve valor bastante para abdicar de uma situação excepcional no cenário artístico de nosso país, enveredando por uma trilha bem diversa daquela que ele seguia cheio de celebridade e das vantagens materiais que a celebridade produz. Há dois anos que o autor de "Sussuarana" não lançava nenhuma novidade. Não fosse a popularidade imensa alcançada pelas suas produções anteriores, cujas tiragens foram a alguns milhares e esses dois anos de reclusão teriam sido a morte do Hekel compositor.

Teria ele desistido da música?

Não se explicava de outra maneira o su silêncio, porque a sua inspiração sempre foi proverbial pela perenidade; seus cento e três trabalhos impressos atestam um labor constante.

Mas ele não desistira da música; apenas e simplesmente ele se dedicara todo à música, àquela cuja fatura demanda sacrifício mas produz coisas colossais como a cultura popular e a formação da nacionalidade. Hekel, que vinha apresentando ao público do Brasil os diamantes brutos das nossas melodias cuidou durante esses dois anos, de burilá-los, apresentando-os de maneira definitiva e tendente a torná-los conhecidos em todo o mundo. O seu trabalho de vinte e quatro meses redundou nesse sucesso estrondoso que foi "André de Leão e o Demônio de Cabelo Encarnado", suíte sinfônica baseada em poema de Cassiano Ricardo. Essa partitura, que foi gravada por iniciativa do autor, está sendo muito ouvida na Europa; na Alemanha já cogitam de editá-la em língua nacional e jornais de toda a Europa referem-se elogiosamente à música, colocando o seu autor entre os grandes músicos sul-americanos.

Desejoso de tornar conhecido dos nossos leitores o novo Hekel, procuramo-lo em sua residência, onde ele estava imerso nos preparativos para o lançamento de uma novidade sensacional: um livro para a iniciação musical das crianças! Nesse livro Hekel expõe da maneira mais simples e concreta os mesmos elementos formadores da enfadonha "artinha", que é o espantalho de todos os garotos destinados à aprendizagem da arte dos sons. Exemplos pitorescos incutem nas mentes infantis as normas da teoria musical, nesse curioso trabalho cujos direitos autorais acabam de serem registrados nos países europeus e na América do Norte.

Uma das páginas do livro representa a construção do
pentagrama e os tangarás que simbolizam as sete
notas musicais.
Hekel nos falou sobre a gênese desse seu livro:

— O sucesso do método está no resultado que se pode obter tendo como objetivo a memória visual da criança.

Cenas de colorido forte — continua Hekel — ilustram uma pequena historieta através da qual, sem que a criança a aperceba, lhe são ministrados conhecimentos básicos de teoria musical.

Nos vários testes que fiz com crianças de idades diversas, pude observar a facilidade de assimilação.

Inicialmente, Zilo, o pretinho sabido, forma com o auxílio das linhas telegráficas um pentagrama no espaço, e os tangarás passam a ter os nomes das notas que vão sendo colocadas nos lugares respectivos.

Explicado os nomes das sete notas, o negrinho, que é o pivô da pequena novela, apresenta o "General Sol" e a sua função no pentagrama.

Note que apesar de se tratar da figurinha de um general, a clave de Sol está perfeitamente desenhada. Assim, dentro de um argumento pitoresco, a criança fica conhecendo os sinais e o que eles representam.

Depois que os lugares das notas estão bem fixados, os pássaros e o general desaparecem para dar lugar a um pentagrama normal com a clave e as semibreves, cujo valor é explicado no capítulo de divisão.

Contudo, como se trata de distrair a criança o mais possível, os nomes das notas são lembrados com um objeto que comece com a mesma sílaba. Veja que o "fá", na 5a. linha tem, ao lado, uma faca, o "sol", tem um soldado, e assim por diante.

Na divisão do compasso de 4 tempos, cujo número inteiro é uma semibreve, está representada por uma laranja. Não divido uma semibreve, divido uma laranja!

Nos diversos testes que fiz os resultados foram sempre coroados de êxito — finaliza Hekel.

— Quem é o editor?

— Eu mesmo. A percentagem dos editores elevaria por demais o preço do exemplar. Por isso resolvi fazer eu mesmo a impressão, a fim de torná-la acessível a bolsos humildes.

— Diga-nos algo sobre os seus atuais trabalhos de composição.

— Atualmente trabalho uma rapsódia nordestina, que apresentarei brevemente com coreografia a cargo do célebre bailarino Francis. Este meu trabalho terá, como complemento orquestral, a colaboração de vozes humanas sem palavras. Fixa diversos aspectos da vida nordestina e desenvolve sobre temas regionais interessantíssimos. Será uma afirmação bem categórica de nossa riqueza musical. Além dessa rapsódia tenho planejados diversos trabalhos que obedecerão às normas que estabeleci. A nossa riqueza folclórica impõe-se ao compositor a obrigação de divulgá-la universalmente, o que importa num trabalho muito sério que nem sempre é aceito pelo povo, mas que é o único que influi sobre o seu progresso mental, forçando-o à compreensão das manifestações de arte verdadeira.

Despedimo-nos de Hekel, criatura rara, que acima de seus interesses pessoais coloca os interesses populares e os da arte."

Nota: (1) Na revista, escrito "Heckel".


Fonte: Revista semanal "Carioca", de 7/8/1937 (artigo atualizado para o nosso português) — Foto e figura extraídas dessa edição.