sábado, março 24, 2012

Funeral de Calça Larga

Joaquim Casemiro
Quando um sambista ao invés de “exalar o último suspiro” (como é das praxes no preciosismo da formulação literária) apenas, no seu linguajar pitoresco, “abotoa o palitó”, o sentir de sua gente não entristece a música. Os tamborins, os pandeiros, continuam a ser batidos na mesma cadência, apenas sem o allegro empolgante, de alvoroço. O seu funeral se faz com tristeza, pesarosamente, mas sem a lamúria em cantochão do requiem e do de profundis.

Foi exatamente assim, que no rito da tradição, o Salgueiro acompanhou o mano Calça Larga (Joaquim Casemiro), levado num bonito envelope ao cemitério da suja e poeirenta praia do Caju. Sentia-se a perda do animador da Escola, do crioulo gordo e afável que nas horas precisas sabia dizer um discurso simples, porém cativante. Não havia, no entanto, o alarde do choro alto, gritado. O samba foi com ele, em funeral ritmado em bemól, quase sussurrado, com uma cuíca gemendo baixinho. Mas não houve, de modo algum, o lamento soturno, de música dorida.

O pedreiro Casemiro

Trazendo nos seus trecos a necessária colher de apanhar e espalhar a argamassa, ferramenta de sua profissão, Joaquim Casemiro chegou ao Morro do Salgueiro no não muito longe ano de 1932. Gordo, com sua calça de boca de sino cobrindo o sapato, e à qual devia o apelido trazido de Miracema teve, no seu jeito comunicativo, falante, boa acolhida. Fez logo amigos: o Anacleto Português, o Alfredo Bolinha, o Servan de Carvalho, o Paulinho de Oliveira, o Mano Galego, o Sílvio da Ladeira, o Nestor e muitos outros. Com eles entrou nas primeiras rodas de samba, formou nos primeiros blocos, nos primeiros sujos do Carnaval.

Pouco depois, abandonava o ofício, deixava de ser um Waldemar do samba (fazia casas e não tinha onde morar) e tornava-se soldado do Exército. Habilidoso, encaixando-se bem na dureza da disciplina do quartel, conseguiu rapidamente pregar na túnica as duas lagartixas da graduação de cabo. Ganhava também, ao mesmo tempo, a proteção do coronel Barros, do Serviço de Intendência, de quem passou a ser peixinho. Com isso, conseguia algumas dispensas e noites livres para com seus amigos do morro ir aos bailes do Lyrio do Aragão, do Sul América, do Elite.

Das “pastorinhas” para o samba

Antes de ser o sambista que morreu consagrado, com voto de pesar no Parlamento, deputados carregando seu esquife e discurso de governador à beira da sepultura, Calça Larga organizou e animou ranchos de pastorinhas. Com Alfredo Bolinha e Anacleto Português (seu compadre e grande amigo), na época do Natal arregimentava as crianças do morro e descia para as visitas aos presépios. Em marcha lenta entoavam os cantares ingênuos: “ ... viemos de Belém saudar Nosso Senhor, o Nosso Salvador...“ E, à frente do grupo, recomendando ao velho que tremesse apoiado no seu bastão, pedindo à borboleta que cantasse mais alto, comandava o Calça Larga.

No começo de janeiro, quando as batalhas de confete iam criando o ambiente para a Rua Dona Luíza e Dona Zulmira, o Calça Larga participava deles. Vinham do morro os blocos (depois classificados de escolas) sem denominação e apenas designados por suas bandeiras: o Verde e Amarelo, o Azul e Branco e tantos outros. Resolveu, porém, a polícia embargar o que tinha as “cores brasileiras” e eles as mudou passando a ser o Verde e Branco. Com sua bateria, suas baianas, desfilou diante do coreto da comissão. Dirigindo a moçada lá estavam o Calça Larga, o Anacleto, o Paulinho, o Servan.

Um morro cheio de “escolas”

Passando os grupos e rodas de samba dos morros, dos bairros e dos subúrbios a ter a denominação de Escola (termo que foi lançado no Carnaval, em 1908, pelo renomado rancho Ameno Resedá) os do Salgueiro prontamente a usaram. Assim, em 1935, ali existiam as Unidos do Salgueiro, Depois eu Digo, Azul-e-Branco, que participavam de um concurso promovido pelo jornal A Nação e disputado na Praça Onze de Junho. Dispersava-se, como rivais, um punhado de sambistas, que embora defendendo a expressão musical do morro tijucano, não poderia mostrar sua força total.
Joaquim Casemiro, o popular Calça Larga


Acertadamente, pondo de lado as diferenças que separavam os componentes das diversas escolas, houve a unificação de todas elas e surgiu como única representativa do morro a Acadêmicos do Salgueiro hoje existente. Essa fusão, acertada e que resultou em maior brilho para o atraente desfile do domingo de Carnaval, foi, é claro, obra meritória de alguns sambistas. Em meio deles, porém, estavam o Calça Larga, o Paulinho e o Anacleto, este sempre ligado ao seu compadre Casemiro. O morro de muitas escolas passou a ter uma só, verdadeiramente representativa e com foros de academia.

“Quero morrer no samba”

Sambista, de pouco ou nenhum tutu armazenado nos bancos, Calça Larga jamais pensou em ordenar disposições testamentárias para acautelar a patroa, e a sua prole de quase uma dezena de meninos. Muito menos pediu, ou insinuou o desejo de ter funeral solene com réquiem e de profundis lamentosos. Apenas, e isto ele dizia cantando os versos de Walfrido Silva em 1935: “Quero morrer cantando um samba, no meio de uma roda bamba”. Ou na versão de Ataulpho Alves, anos após: “Quero morrer numa batucada de bamba, na cadência bonita do samba”.

Conseguiu como era de seu anelo proclamado em música e ao ritmo de bateria certa, afinada, a morte que o consagraria: no terreiro do samba, apito na boca, o boné vermelho e branco, nas cores de sua querida escola. Deixou triste, inconsolável, a moçada a quem ele, gordo, gingando o quanto permitia sua volumosa barriga, comandava: “no peito!... numa boca só!...“.

E, tal como disse o governador, o chaveiro S. Pedro deve tê-lo acolhido assim, com intimidade: “Entre, Calça, você é um dos nossos”.

(O Jornal, 20/9/1964) 
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Fonte: Figuras e Coisas da Música Popular Brasileira / Jota Efegê. - Apresentação de Carlos Drummond de Andrade e Ary Vasconcelos. — 2. ed. — Rio de Janeiro - Funarte, 2007.

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