domingo, março 18, 2012

Lalá na música popular carioca

Lamartine Babo
Um compositor português definiu de maneira bem expressiva o característico da música popular dizendo: “cantiga da rua, que corre, flutua, não é minha, não é tua, não é de ninguém". E, de fato, a canção feita para o povo, aquela que cai no seu agrado, passando a ser entoada em toda a cidade, nos arrabaldes, nos subúrbios, quando não toma o exato direito de domínio público o adquire pela ampla divulgação. Todos, e não apenas o autor, se sentem um pouco donos daquilo que ouvem cantar e que acabam aprendendo seus versos, sua melodia.

Às canções de Lamartine Babo (do Lalá, como o chamava a imensidão de seus admiradores), feitas todas com muito sabor popularesco, pode-se aplicar aquela conceituação de seu colega luso. Suas marchinhas, seus sambas, e até mesmo suas valsas, que poderiam pretender ser pernósticos ou fingir erudição, tiveram sempre, a par de um sentido brejeiro, humorístico, o de espontaneidade. Destinava-os ao povo, visando ao sucesso fácil, a recepção por todas as camadas sociais e, graças a sua habilidade, jamais se viu frustrado nesse desejo.

A “renascença” da música popular carioca

Se a verdadeira Renascença deu novos rumos às manifestações artísticas ensejando o aparecimento de novos valores, novas tendências, também a música popular carioca teve coisa mais ou menos semelhante. A modinha de versos rebuscados, os lundus, os tangos e tanguinhos, mesmo os chorinhos, já haviam sido vencidos pelo samba que como expressão genérica de música popular tivera seu advento na primeira década deste século. Surgiram então Donga, Sinhô, Caninha, Pixinguinha e muitos outros dominando uma época, firmando-se como ases. Eram, reconhecidamente, os maiorais.

Muitos dos citados, ou mesmo todos eles, chegaram ainda válidos, competindo na parada musical que a indústria do disco fonográfico fomentava durante todo o ano e, lógica e principalmente, no Carnaval. Entretanto, pouco antes de surgir a terceira dezena dos 1900, apareceu um grupo de moços citadinos. Vinha despegado das rodas tradicionais do samba (influenciadas por baianos e descendentes de africanos) e apresentava-se dando nova feição às canções populares. Entre eles repontava o magríssimo Lamartine Babo que, logo na marchinha Calças Largas, glosando um tipo das ruas, da avenida, via o seu pronto êxito, encorajava-se á novas produções no mesmo estilo.

Quem era o magro Lamartine

Saído de um colégio de frades (o Mosteiro de São Bento), dos escritórios do já àquela época combatidíssimo polvo canadense (Light and Power) e de uma companhia seguradora, Lamartine era um desconhecido. Não formava entre os donos do samba. Era apenas um freqüentador assíduo das forrinhas do tradicional Lírico, do Municipal, do São Pedro de Alcântara (atual João Caetano), onde se realizavam normalmente temporadas de operetas. Sabia, assim, de cor, não só os leitmotivs de todas elas, mas também suas valsas e seus faustosos finales. Aplaudiu muitas vezes, frenético e delirando, Clara Weiss, Franca Boni, Wanda Rooms, Laís Arêda, Vicente Celestino e seus irmãos.

Desconhecendo a grafia das notas, mas de grande pendor musical, conseguia transmitir aos arranjadores ou escritores, de maneira bem fácil de recolher, o tema melódico que levava na cabeça. Até mesmo as introduções, que na generalidade das músicas dos simplesmente inspirados são feitas por quem as lança na pauta, Lamartine as arquitetava procurando dar-lhes pompa com a predominância de metais. E para se tomar intuitivo, para mostrar bem como queria os efeitos, imitava o trompete, o trombone, ajuntando a gesticulação própria de um executante de tais instrumentos.

Eclético, versátil, mas, principalmente humorista

Passando-se em revista a vasta bagagem musical deixada por Lamartine Babo, e que apesar de tantas agremiações arrecadadoras de direito autoral não o fez rico, constatar-se-á sua versatilidade. Da valsa amena, terna (“só nós dois no salão e esta valsa”), passa-se à crítica maliciosa (“menina que chega em casa às quatro da madrugada, enquanto a escada vai subindo, na língua da vizinha está caindo”). Encontra-se também o poeta sentido (“onde a dor e a saudade contam coisas da cidade”) contrastando com o humorista bem atento às coisas de sua cidade (“mulata, mulatinha meu amor, fui nomeado teu tenente interventor”). Tudo, como se viu, diverso, vário, eclético.

Mas se a sua versatilidade, a profusão rítmica e melódica de suas composições revela um compositor capaz de fazer todos ou muitos gêneros de música popular, a sua principal faceta era, no entanto, o humorismo. De gênio expansivo, cultuando ainda o trocadilho, o chamado jeu de mots, que alcançou na sua grande voga dos cafés que foram pontos de encontro da boêmia, não perdia vaza de perpetrá-los: “quando morrer não quero busto, prefíro ser vivo robusto”. E, ao riso que provocava com sua piada ajuntava o seu feitio alvoroçado, marcado pelos tiques que demonstravam seu nervosismo, sua exuberância.

Ingresso e permanência na popularidade

Autor de canções para o povo, Lamartine teria, como conseqüência natural, de tornar-se uma figura comum à gente que entoava suas músicas e seus versos. A princípio buscava essa popularidade freqüentando as casas vendedoras de pianos e de discos onde os fonógrafos, e já a vitrolas, rodavam quase todo o dia, principalmente na estação carnavalesca, suas marchinhas, seus sambas.

Aparecia à tarde, quando à porta de tais casas se formava um auditório para ouvi-los e gostava de ser saudado pelos que o reconheciam na sua magreza, no terno de palha-de-seda que usava freqüentemente.

Mais tarde, conhecido de toda a cidade, sem fingir cansaço dessa popularidade, demonstrando o quanto lhe agradava o ser identificado nas ruas, nos bondes, nos ônibus, nos campos de futebol (onde ia torcer pelo seu América) não a evitava. Ao olhar de um fã, à admiradora que o apontava à sua passagem, correspondia com um sorriso feliz, com uma saudação acolhedora.

Mais do que música e versos, como se fosse pouco o punhado de canções que fazia para o prazer e alegria da gente de sua cidade, ele também dava a sua convivência amiga, a constância de sua presença, sempre saudada com carinho e grande admiração.

(O Jornal, 7/7/1963)
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Fonte: Figuras e Coisas da Música Popular Brasileira / Jota Efegê. - Apresentação de Carlos Drummond de Andrade e Ary Vasconcelos. — 2. ed. — Rio de Janeiro - Funarte, 2007.

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