quinta-feira, março 01, 2012

Nosso Sinhô do Samba - Parte 4

Sinhô não se considerava mulato. Numa terra de mulatos geniais, o sambista não topava a classificação. Dizia-se com certa ufania “caboclo autêntico”. Tinha o pernosticismo característico dos homens de cor, sujeitos no seu tempo ainda a restrições vexatórias, de que se vingariam demonstrando inteligência e ousadia e conseguindo destacar-se notadamente em atividades artísticas, o que no tempo não era muito fácil.

Natural que se sentisse vaidoso diante do bom êxito das suas composições e da popularidade que dia a dia mais lhe exaltava o nome. Não se lhe podia negar o sucesso alcançado pelas composições que a cidade cantava e assobiava e que saltavam das ruas para o teatro musicado, em fase de grande animação.

Quando da sua visita ao Rio, os reis belgas demonstraram nítida simpatia pelas produções de Sinhô ao ouvirem música nacional no encouraçado São Paulo, que os trouxe ao Brasil. Dentre as melodias executadas pelo quinteto de bordo, a rainha apreciava especialmente o samba Fala meu louro, grande sucesso de Sinhô. Vasseur, que integrava o conjunto, foi solicitado várias vezes a executar as composições de Sinhô para a rainha. E o jornal A Noite, de 25 de setembro de 1920, publicava pequena nota: “Em uma das últimas refeições no Palácio, S. M. a rainha Elisabeth manifestou desejos de ouvir uma das nossas músicas populares. Por acaso o maestro Pinto de Oliveira, diretor da Orquestra do Palácio, tinha ensaiado o Papagaio louro (Fala meu louro) e executou-o. A rainha aplaudiu a música e seus executantes”.

O compositor carioca quis provar seu reconhecimento aos ilustres visitantes organizando um álbum de suas produções que lhes foi ofertado.

A propósito, conta Augusto Vasseur que o álbum a princípio era feio e mal arranjado, numa capa de papelão ordinário, com a dedicatória grafada no próprio cursivo de Sinhô: “Aos Reis da Bélgica, Srs. Alberto e Elisabeth - oferece Sinhô”. Dedicatória simples e sincera, mas que feria os preceitos majestáticos. Vasseur mandou fazer urna encadernação decente, bonita, com ofertório adequado e impresso.

De qualquer forma, o fato teria de despertar a inveja dos concorrentes. Sinhô conquistava terreno em todas as camadas sociais. Continuava cada vez mais a destacar-se. E não era somente à custa dos trouxas do Rio de Janeiro, como haviam cantado Pixinguinha e China.

Mas não se diga que o sambista vitorioso tenha fugido às camadas de onde viera. Nada disso. Tanto freqüentava a Kananga. como as casas mais ilustres que o acolheram. Era amigo de políticos e figurões que o prestigiavam. Nos morros, ou na zona sul, nos subúrbios ou na Tijuca, Sinhô tinha trânsito livre. Nunca abandonou as chamadas rodas da malandragem. Foi amigo do famigerado Sete Coroas, salteador que se fez famoso, a quem o compositor dedicava um samba que parece não foi gravado, e é raríssimo hoje.

Na fase ascensional de Sinhô tinha ele em Caninha (José Luís de Moraes) não um inimigo, mas um rival de categoria. Eram dois bambas da música popular carioca e não seria exagero o que diria a quadrinha popularizada:

São dois cabras perigosos,
Dois diabos infernais:
José Barbosa da Silva,
José Luís de Moraes.


Essa rivalidade era inteligentemente explorada pelos dois compositores, na época dos mais destacados no Rio. Em 1921 , Caninha já se fizera detentor de alguns sucessos carnavalescos, entre os quais Me leva, me leva seu Rafael (Quem vem atrás fecha a porta) e Esta nega qué me dá.

Também foi Almirante quem relatou no rádio, e depois em palestra, um dos encontros dos dois bambas da música, no ano de 1921, numa festa da Penha, naquele tempo o campo experimental das músicas de Carnaval, na própria expressão da maior patente do rádio. 

Vários grupos se apresentavam visando ao lançamento das suas composições. Para aumentar o interesse competitório, o industrial Eduardo França, o homem da Lugolina e do Vermutin, que foi sempre grande animador da música popular e do Carnaval carioca, instituíra uma taça. Lá estavam Os Africanos (Vila Isabel), o Grupo do Louro e o afiadíssimo Grupo dos Hanseáticos, chefiado pelo Caninha. Uma mu1tidão cercava os concorrentes no festivo arraial. E eram centenas os que já sabiam de cor os versos da bonita marcha lançada pelo Caninha, Me sinto mal:

Ai, ai
Me sinto mal
Depois do Carnaval.
Quando chega o Carnaval
Ninguém lembra a carestia
Vamos todos pra Avenida
E caímos na folia.


Tem gente que cai na farra
Na véspera do Carnaval
Na quarta-feira de cinzas
Sempre diz: me sinto mal.


O Grupo dos Hanseáticos parecia vitorioso. O samba de Caninha despertara o maior entusiasmo. Todos ali o cantavam. Mas eis que se aproxima Sinhô, logo recebido com alegria pelos circunstantes. Chegava sobraçando belíssimo violão cravado de madrepérolas. Cercavam-no alguns companheiros, todos sem instrumentos. Sinhô começou sozinho a cantar sua marcha Fala baixo, especialmente composta para aquele lançamento. Os versos eram fracos. Apenas o estribilho tinha grande força (1). Mas a melodia agradava e daí a pouco eram dezenas os que cantavam o poemazinho; onde havia a palavra rolinha, que bem podia ser referência ao apelido dado a Artur Bernardes:

Quero te ouvir cantar
Vem cá, rolinha, vem cá
Vem pra nos salvar
Vem cá, rolinha, vem cá.

Não é assim
Assim não é
Não é assim
Que se maltrata uma mulher.


Não satisfeito do sucesso da marchinha que se estenderia ao Carnaval de 1922, tornando popularíssimo o refrão, Sinhô ainda lançou outro número de êxito certo, o samba Sai da raia, talvez sua composição mais feliz do referido Carnaval e que seria cantada e executada por grupos e orquestras durante vários carnavais subseqüentes.

Na época, a festa da Penha era de fato uma festa. Depois do Carnaval seria o maior acontecimento popular do Rio. Verdadeiras multidões acorriam ao subúrbio que todo se transformava num arraial de verdade. A imprensa abria colunas largas para noticiário dos domingos festivos durante todo o mês de outubro. E de 1920 em diante até alguns anos depois a Penha seria de fato o início do Carnaval pelo menos no que se refere à música. Compositores e músicos comandando conjuntos amestrados lançavam as composições, muitas delas focalizando a festa religiosa, mas já de olho na festa profana do ano seguinte. Sinhô, Caninha e outros a essa época já eram veteranos da Penha.

O Jornal do Brasil, que graças a seu cronista Vagalume, sempre dispensou atenção especial aos festejos do subúrbio leopoldinense, na sua edição de 23 de outubro de 1911, já estampava algumas fotos, numa das quais aparece Sinhô, ainda não batizado como compositor. Verdadeiras multidões acorriam ao subúrbio e daí a razão dos lançamentos ali das músicas de Carnaval. Composição consagrada na Penha era êxito indiscutível em fevereiro.

Os encontros de Caninha e Sinhô se apresentavam sempre sensacionais. E naquele 1921,  o compositor de Fala baixo e Sai da raia fora o grande vitorioso da Penha, triunfo que se consolidaria no Carnaval vindouro. Mas ali mesmo Sinhô também sentiu o amargo da derrota que lhe infligira o seu temível rival.

Curioso que a vaidade de Sinhô nem sempre o levasse a festivais e espetáculos para os quais era insistentemente solicitado. Tomou parte, contudo, na Noite brasileira, realizada no Teatro Fênix em março de 1927 e na Noite luso-brasileira, em homenagem ao aviador Sarmento de Beires, realizada no Teatro República na noite de 4 de junho do mesmo ano. Nessa festa, José do Patrocínio Filho proferiu uma palestra e Sinhô foi coroado Rei do Samba, depois de vitorioso no concurso ali efetuado.

Quase dois anos mais tarde, em maio de 1929, iria a São Paulo chefiando um grupo que deu uma récita no Teatro Municipal, com a presença do senhor Júlio Prestes, então candidato à presidência da República. O pretexto era o lançamento da marchinha de Freire Júnior, Seu Julinho vem. A propósito do espetáculo, evidentemente uma promoção política.

O Estado de São Paulo, de 21 de maio de 1929, fez o seguinte comentário: “Com a presença e a cumplicidade de altas autoridades do Estado e do Município, o Teatro Municipal, anteontem à noite, esteve em pleno domínio da fuzarca. Certo é que a noitada paulista se não foi uma apoteose ao candidato Júlio Prestes o foi a Sinhô, talvez o maior vitorioso da noite, pois também compusera o samba Eu ouço falar:

Eu ouço falar
Que para o nosso bem
Jesus já designou
Que seu Julinho é quem vem.

Deve vir esse caboclo
Pra matar nossa saudade
Para o riso ser leal
No coração da humanidade.


Essa história que anda aí
De “vem pra ganhar vintém”
Ele no precisa disto
Nem de “aproveitar também”.
(2)

Eu no quero que este samba
Vá contrariar alguém
O caboclo é da fuzarca
E só trabalha para o bem!
Olé!


O sabujismo naturalmente bem pago e de certo modo compreensível levava o popular compositor a tais exageros. O candidato oficial se transformava em ‘caboclo da fuzarca’ e o compositor além de mau profeta chegava a ser blasfemo.

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(1) Característica maior de Sinhô. Era um fabuloso estribilhista. (2) Expressões de outra marchinha do ano sobre o mesmo tema.

Fonte: "Nosso Sinhô do Samba" / Edigar de Alencar - Edição FUNARTE - Rio de Janeiro 1981.

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